top of page

Quando Bandidos São Críveis


Conversa #20 Hounds of Love (Ben Young, Austrália, 2016)

Em dezembro de 1987, seguem em curso uma série de crimes praticados por um casal de Perth, na Austrália. Eles sequestram garotas jovens, abusam delas e as assassinam. John White (Stephen Curry), o marido, as estupra, e disso retira algum combustível para se sentir atraído pela exasperação de Evelyn White (Emma Booth). A esposa, em ciúme e desespero, mas completamente submissa ao marido, compra o jogo. Depois de abusada e morta, a garota da vez é enterrada numa plantação de eucaliptos a perder de vista. O casal parte então para a seguinte.

A mais recente refém de ambos é Vicki Malone (Ashleigh Cummings). Ela não vai bem na high school, e os pais estão a se separar. A mãe (Susie Porter) a proíbe de ir a uma festinha: deve ficar em casa, estudar. Mas Vicki, consegue driblar a vigilância da mãe e dirige-se para a festa a pé, pela ruas escuras do subúrbio. No caminho, o casal White lhe oferece a fatídica carona.

Este é um thriller engenhoso: adulto, ocupando-se de temas cruéis, porque aproxima o gênero de gente comum, que mora do outro lado da rua, mas pode secretamente calçar as sandálias do psicopata residente. Mais do que morar do outro lado da rua, os criminosos vivem como alguém que mora do outro lado da rua, a não ser por sequestrar, seviciar e assassinar garotas indefesas com requintes de crueldade, e por puro esporte. Isso nos remete para o fato de que os instantes de psicopatia são em geral mais desnudáveis no aconchego do lar do que no ambiente de trabalho, pois já menos necessidade de se mostrar razoável e cooperativo. Hounds of Love não acresce nenhum glamour ou maneirismo aos criminosos. E o modo de contar o crime em nada assemelha-se a "como se produz um thriller em Hollywood nos anos 2010". A seu modo, essa aproximação é feita com invejável perícia. E por um diretor estreante.

Os traumas passados por Vicki Malone se encontram entre os mais realistas em filmes policiais nos últimos tempos. A garota urina e defeca sobre o colchão antes de ser violada. Seus pulsos ficam completamente em carne viva de tanto estrebuchar, e os hematomas no corpo parecem mais reais que nunca. Emma Booth nos brinda com uma estupenda performance na pele de uma mulher completamente obcecada por satisfazer o marido e, ao mesmo tempo, quebradiça, vulnerável diante de tudo que tem a ver com crianças, com maternidade. Ainda assim, passando por cima de todo ciúme e vexame, Evelyn apoia o marido. E, de início, um dos fetiches no ritual de ambos é transar na presença da sequestrada. Mas John começa a perder a guerra no instante em que mata a cadela de Evelyn num cesso de raiva.

As notas menores no filme são o final e o emprego de temas musicais. Pois é justamente no final quando, pela primeira vez, toda a circunstância soa forçada, inverossímil. Em especial pela ida da mãe a uma casa bem em frente à da que sua filha está refém. Isso ataca a integridade do roteiro, que aproxima a monstruosidade do tratamento dado à Vicki do cotidiano na moradia nada glamourosa do casal. Por seu turno, lançar mão de "Lady D'Arbanville" em qualquer cena na qual haja um funeral feminino parece o óbvio. (Ainda que seja o funeral de uma cachorra). Além do que, o tema de Cat Stevens, lançado em 1970, não era um hit à época da trama.

No mais, vários rastros de estilo dizem presente, expostos mediante certos procedimentos que caem como luva para o reforço da atmosfera sombria em um ambiente familiar. Ou dimensionar como era a vida àquela altura. (E é incrível pensar que um filme "de época" se passe em 1987, mas algo com que devemos nos acostumar, mais e mais). É o caso da direção de arte, com sua atenção aos detalhes. Embora a casa dos White, esparsamente mobiliada e decorada, seja locação, não cenário, e, logo requeira uma "tradução" para meados dos anos 1980. Mas também destaque-se um pontual emprego do desfoque e, sobretudo, um magnífico uso de câmera lenta, que contribui para propagar a permanente tensão. E esse clima de perversão humana, do outro lado da rua, que contamina os dias quentes do Natal de 1987, em Perth.

...

  • Black Facebook Icon
  • Black Twitter Icon
  • Black Pinterest Icon
  • Black Instagram Icon
FOLLOW ME
SEARCH BY TAGS
FEATURED POSTS
Verifique em breve
Assim que novos posts forem publicados, você poderá vê-los aqui.
INSTAGRAM
ARCHIVE
bottom of page