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Desconjunções & Vírus


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Conversa #1

Aquarius (Kleber Mendonça Filho, Brasil, 2016) - cin. Pedro Sotero e Fabrício Tadeu

Muita expectativa cercou a estreia de Aquarius. É um filme que toca num assunto vital para as metrópoles do Nordeste. Salvador esbarra em problemas relativos ao modo como se está processando a revitalização de seu Centro Histórico, sob ACM Neto. Fortaleza há coisa de dois anos enfrentou uma série crise envolvendo obras viárias que invadiam a área de seu mais vasto parque o urbano: o Cocó. Recife, não é de hoje, conhece o impasse em torno do Cais Estelita, ameaçado de ser posto abaixo para a construção de um megaprojeto imobiliário. Mesmo uma cidade médio porte, como Aracaju, enfrenta sérios contratempos: a ocupação por um cinturão de condomínios de sua última fronteira verde, o bairro de Jabotiana, e, dentro dele, o aterramento de vastas porções da belíssima Lagoa Doce, que verte-se paralela ao curso do Rio Poxim.

Se numa alegoria, uma cidade pode ser aproximada de uma mulher, o assunto de Aquarius, a determinação de uma mulher por defender seu patrimônio arquitetônico e sentimental, por preservar sua memória e integridade de direitos; nunca esteve mais na crista da onda, e isso só atiçou a curiosidade em torno do filme à reboque do exuberante O Som ao Redor. São filmes que apontam para um outro Nordeste: adensadamente urbano, industrial, com vastos bairros de classe-média. Uma imagem diante da qual o resto do país ainda hesita um pouco em provar com o olho, tantos foram os clichês que recobriram a região como uma crosta de cracas e moluscos agrega-se ao casco de uma jangada ao longo de décadas.

E então, se de repente o turista percebe que em vez da jangada há uma pequena lancha a motor, para passeios, deseja de imediato a velha jangada de volta. Afinal, é com ela que está acostumado desde o cartão-postal e a lojinha de suvenires. Os filmes de Kleber Mendonça Filho e outros realizadores de sua geração (Marcelo Gomes, Karim Aïnouz, Alexandre Veras, Gabriel Mascaro), ajudaram a descomprimir a potência retrógrada de alguns clichês e emblemas já desgastados.

Como se não bastasse, há a situação política e econômica do país em um ano de extrema instabilidade. E, atrelada a isso, a atenção gerada pelos atores e diretor em Cannes: um protesto contra o impedimento da Presidente Dilma Rousseff com expressa repercussão internacional. Antes de estrear no país, Aquarius já constituía-se num caso de interesse antecipado, como poucos filmes despertaram.

Para pôr ainda mais lenha na fornalha, houve o caso da indicação do filme brasileiro ao Oscar. Alguns cineastas de renome, casos de Anna Muylaert e Gabriel Mascaro, retiraram suas candidaturas em apoio a Aquarius. Mais polêmica, quando a escolha acabou recaindo sobre Pequeno Segredo (David Schurmann, 2016), um filme que até então muito poucos tinham visto. E, pior, depois de visto foi bastante questionado quanto ao seu potencial estético e coerência artística. E tome mais expectativa em torno do segundo longa de Kleber Mendonça Filho, que a essas alturas já havia estreado e sido visto por dezenas de milhares.

Mas bem, um brother da mais inteira confiança me veio com um argumento: dificilmente o segundo filme de um realizador que estreou com uma produção excepcional consegue manter a expectativa. É um argumento clichê entre críticos. E um ligeiro álibi para realizadores. Porém não é algo que possa ser aplicado à relação possível de se traçar entre O Som ao Redor e Aquarius. O primeiro é um dos mais notáveis filmes brasileiros das últimas décadas; o segundo, uma barafunda que se exaure num mau roteiro, no excessivo protagonismo de uma atriz sem muita noção dos códigos locais, além de enredar-se numa trama que --- à exceção de intervalos pontuais --- caminha para um epílogo, algo, histriônico. Desfecho com impacto digno de cena final de telenovela. Isso a despeito da glorificação de temas de MPB nem tão canônicos assim.

Invertendo o título, podemos versar primeiro sobre o vírus, a protagonista: Clara (Sônia Braga). O vírus, como se sabe, é o único ser vivo que se propaga sem nenhuma relação com o outro. Seu elemento é, por excelência, a incomunicabilidade. Sônia Braga, essa insofismável diva do cinema brasileiro, mesmo aos 60 e com suas cicatrizes, consegue em Aquarius duas proezas: 1. não convencer como uma personagem genérica, munida de um drama existencial: viver sob a constante ameaça de ser privada de um espaço de estima. (Ou mais que isso, de auto-estima, onde se desenrolou a maior e melhor parte de sua vida, pois ali foram sedimentadas suas mais caras lembranças e conquistas como profissional, mãe e mulher); mas também 2.tampouco convencer como nordestina culta e urbana batendo à porta da velhice. Porém isso também se evidencia em outros momentos. Por exemplo, no instante em que um de seus filhos recorre à estante e pinça um livro. A dedicatória do livro, em que Clara (Sônia Braga), cumprindo o rito-clichê da mulher moderna e liberada, desculpa-se por despender tanto tempo longe dos filhos, do marido, da família, cumprindo projetos pessoais de musicologia, fica comprometida, de cara, por um detalhe de direção de arte: a impressão do livro é de editora de fundo de quintal. Era de se esperar no mínimo um padrão visual à altura do sacrifício de passar anos ao largo da família, mas, por igual, do suposto status de musicóloga respeitável da protagonista. Isso para não mencionar o bom gosto de quem dispôs de tanto tempo livre para ouvir música, escrever acerca do tema, e escolher tipos e uma programação gráfica mais à altura de sua paixão. Especialmente depois de vir convivendo, ao longo de anos, com tanta boa arte de capa em prismáticos LP’s. Aqui o diretor de arte dormiu no ponto.

Assim, Aquarius propaga-se, de naufrágio em naufrágio. Fica evidente o desejo --- embora não logrado --- de sugerir uma espécie de linhagem em família no que toca a afinidades e gostos. Inclusive musicais. Essa linhagem supostamente começaria em Tia Lúcia (Thaia Perez), passaria por Clara (Sônia Braga), e desaguaria no sobrinho predileto desta: Tomás (Pedro Queiroz), a quem ela sugere que toque Maria Bethânia para a (futura) namorada que está chegando do Rio, Júlia (Júlia Bernat). Logo, por tabela, essa linha da perfeita empatia chegaria a Júlia, Mas, de algum modo, a natureza virótica de Clara impede até mesmo uma aproximação mais íntima com esse sobrinho ou com Julia. Uma que se possa pôr na conta daquelas espontâneas e desinteressadas amizades que gente afim tem no circuito da família. E que às vezes desconhece idades ou maiores proximidades de sangue. Ou mesmo posições políticas e comportamentais mais convencionadas. Isso é um tanto atenuado depois, com idas à praia e ao aniversário de Ladjane (Zoraide Coleto), a empregada de Clara. Júlia também dedica a Clara uma bela faixa de Gil, que aliás não é tão acessória no álbum quanto a garota recém-chegada apregoa. Ainda assim, o nível de cumplicidade entre Clara e o jovem casal passa longe daquela descontração fluida de almas gêmeas. E, de outro modo, o rapaz não só não segue sua sugestão, como se mostra visivelmente constrangido com a interferência da tia diante da garota. Mas há ainda um outro clichê a lamentar.

Ocorre à altura em que Alexandre (Leo Wainer) o sujeito charmoso, grisalho, vindo de Fortaleza, depois do flerte, da dança, de alguma carícia no carro, se afasta tão automaticamente dela ao perceber que extirpara uma das mamas numa cirurgia. Afinal, eles pareciam demasiado envolvidos e o marmanjo razoavelmente educado para reagir de um modo tão brusco e, algo, rude. Esse clichê pode ainda ser suportado, não houvesse outros.

Um dos mais decisivos vem a ser a relação de Clara com o próprio espaço que aguerridamente ela tenta manter sob sua propriedade: o apartamento em Boa Viagem que está no centro mesmo da trama de Aquarius. Quer dizer, não há signos, elaborações, amostras de uma real ligação simultaneamente prazerosa e afetiva entre Clara e o espaço do Edifício Aquarius, espremido entre os arranha-céus de Boa Viagem. A birra entre ela e quem tenta separá-la desse espaço parece combustível bem maior que o próprio apreço que Clara nutre pelo apartamento de piso de tacos gastos, janelas corrediças, cozinha com tijolos cobogós, ladrilhos, torneiras e maçanetas de época, ausência de elevador, escadas em curva, garagem destacada, e uma série de pequenos recantos acolhedores. Há algo que se interpõe entre ela e esse espaço, não permitindo que ambos se entrespelhem. Não concedendo certo aconchego, um reclinar de cabeça.

Até mesmo no momento em que, tentando compensar-se da solidão, ela transa no sofá com o michê indicado por uma das amigas, Clara não parece confortável em casa. Não parece "em casa" em casa. O apartamento não surge como aquele local que a faz baixar as guardas, as defesas e simplesmente repousar, guerreira. Não assoma como uma extensão do corpo e dos gestos de Clara. O que se depreende disso? Que o Leitmotiv de Clara não seja tanto manter sua moradia naquele espaço povoado de história, aconchego, sonhos, passado, música, apego e uma vista para o mar; mas, antes, antagonizar frontalmente com quem dele quer deslocá-la. Esse é um aspecto grave, porque uma coisa decorre da outra. E a segunda não poderia ser mais prioritária que a primeira para alguém com um mínimo de bom senso. Ou seja, a ira de Clara contra as negociatas da incorporadora deveria ser secundária diante do apreço que ela nutre pelo espaço que defende. Pois como diz um Oswald de Andrade retomado por Torquato e os tropicalistas, que Clara deve ter escutado a contento: "a alegria é a prova dos nove". E, obviamente, contrariando a letra da bossa-nova famosa: nem sempre é triste viver na solidão. Mas talvez seja bem mais quando não se tem uma paixão. Essa paixão não constitui necessariamente algo sexual ou direcionada a alguém específico; mas é sempre amorosa e erótica em relação a seu objeto. Ou mesmo diante da alusão ou lembrança dele. Ainda assim, parece um tanto previsível que Sônia Braga terá pela frente um caminhão de prêmios em festivais diversos. Embora isso não nos deva iludir: vai se dever menos aos seus méritos de atuação --- ou à coerência de seu papel --- e mais ao fato de ela representar uma mulher forte na tela. A que todos queremos sancionar. A que nossa época adora, porque boa parte de nossos pais, ou tios ou avós ainda trataram as esposas como mulheres submissas, restritas aos filhos e à lida doméstica. Naquele mesmo instante em que as mulheres achavam tal procedimento de um naturalismo pouco contestável, com as exceções a demarcar futuros. E isso tudo, claro, se torna mais agudo num país que recém-retirou do poder, de forma no mínimo questionável, uma mulher forte, intransigente, assemelhada (ao menos nesse ponto) à personagem de Braga. E, no entanto, seria problemático comparar os méritos de atriz de Sônia Braga com os de uma Marília Pera, de uma Fernanda Montenegro, de uma Marcélia Cartaxo, de uma Giulia Gam, de uma Fernanda Torres, de uma Hermila Guedes... Nessa linhagem há toda uma ilustre trupe de grandes atrizes brasileiras que chega ao presente encarnada justamente pela Maeve Jinkings de Boi Neon (Gabriel Mascaro, 2015) e do próprio O Som ao Redor. Nesses longas Jinkings nos revela respectivamente uma caminhoneira desassombrada, que é ao mesmo tempo 'stripper' e mãe, no submundo sórdido das vaquejadas; e o cotidiano vazio e neurótico de uma dona de casa urbana de classe média, literalmente atrás do que fazer, de como amar ou passar o tempo. Isso resulta nas paradigmáticas cenas das crianças (em suposta terapia) saltando sobre seu dorso, a do envenenamento do cachorro da vizinha e a da masturbação na quina da máquina de lavar.

Um dos pontos altos de Aquarius é o aniversário de Tia Lúcia (Thaia Perez) nos anos 1980. É engenhoso que essa tia, em meio às formalidades de família, já uma mulher madura, passada na casca do alho, e que aliás transmite uma sensação de fortaleza e integridade, tenha lembranças lúbricas e sensuais, justamente no instante em que é homenageada pelos xaroposos discursos dos sobrinhos netos. O episódio poderia agregar um conto ao volume Laços de Família, de Lispector, que vai muito nessa direção. Além disso, a atriz que faz Clara quando jovem (Bárbara Colen) consegue transmitir mais humanidade e simpatia --- sem deixar de ser aguerrida, sem perder firmeza, mesmo recém-convalescendo de um câncer e com aquele (aliás delicioso) visual "Elis Regina", na circunstância --- que a Clara madura, interpretada por La Braga. De qualquer modo, o episódio da homenagem à Tia Lúcia constitui um dos mais belos momentos do filme, especialmente quando logo depois nos é brindada uma canção de aniversário, que também recorre em O Som ao Redor.

Aqui, de outro modo, é um pouco irônico que Clara, sendo musicóloga, não tenha aproveitado o ensejo (a narrativa em flashback) para discorrer mais sobre essa canção de aniversário, de autoria de Villa-Lobos. (E, como quase tudo em Villa-Lobos, feita a partir de empréstimos da musicalidade popular sobretudo do Nordeste e Norte do Brasil, recolhidos durante suas viagens). Mas, se formos investigar o caso com melhor lupa --- ou quem sabe com melhores fones de ouvido --- a musicologia de Clara não seria o bastante para uma filigrana tão sutil. Embora seja precisamente dessas sutilezas que se constituam os grandes filmes. Como quando no Som ao Redor, o proprietário de metade dos imóveis da área em que mora trata os seguranças da rua como jagunços no engenho. Ou sai para tomar um banho de mar noturno no modo senhorial. Ao passar pelos quarteirões que antecipam a praia, parece caminhar sobranceiro por seus antigos domínios: as fieiras de canas.

Além disso, o elenco de apoio, com a possível exceção de Irandhir Santos, Thaia Perez, Maeve Jinkings e Bárbara Colen, não contribui muito --- ainda que a responsabilidade disso não possa ser inteiramente creditado a esse elenco, mas a um mau roteiro. Ambas as deficiências, aliás, começam muito incipientes na trama. Precisamente no momento da entrevista sobre a razão de manter tantos vinis. A resposta de Clara --- a despeito de certa ingenuidade ou cretinice pueril da entrevistadora --- é simultaneamente tão frívola, blasée, desprovida de qualquer espontaneidade, simpatia, compaixão, calor humano --- para não falar de algo que incorpora conhecimento de causa, assertividade, plausibilidade, certa leveza casual e um mínimo de autoridade razoável e entusiasmo pelo campo da música e da comunicação --- que fica evidente que ela jamais poderia ter sido uma ouvinte atenta de música. Muito menos uma musicóloga. A despeito disso, outro ponto alto de Aquarius é a trilha musical. Os temas no geral cortejam um brega que se foi dignificando ao longo das décadas. Depurando-se e caindo no gosto da classe-média. Como o desencanto explícito de Taiguara, o dramatismo exacerbado e recitativo de Bethânia, o bolero rasgado de Evaldo Gouveia no timbre tenor ligeiro de Altemar Dutra, os excessos românticos do Roberto pós-Estrada de Santos, e, em especial, certo retrato do Recife feito por Reginaldo Rossi ou a salada pop do Queen. Estes últimos, detestados pelos britânicos, mas adorados em quase qualquer outra parte do planeta. Quer dizer, detestados pelo menos por aquele largo contingente de britânicos que cultua grupos que sobrevieram logo em seguida, conformaram um fenômeno mais local e, quiçá, menos em desacordo com uma sátira à dura realidade do tatcherismo: The Jam, The Fall ou The Smiths, por exemplo. Outro aspecto nada conspícuo em Aquarius é a cinematografia, que, a exemplo de n'O Som ao Redor, ficou a cargo de Pedro Sotero e Fabrício Tadeu. Bons fotógrafos, ainda que distantes da inventividade plástica de um Ivo Lopes Araújo. O caso, aqui, é que ao contrário das ambiências noturnas e muitas cenas em interiores de O Som ao Redor, com uma paleta de cores mais sombria, puxada para o vermelho, o púrpura, o gris, o preto, uma luz mais quebrada, menos exuberante, sob a qual o Nordeste assoma um tanto mais diverso que o clichê; em Aquarius, com mais externas e cenas de praia ao longo do dia, a “profusa” luz retorna, com toda a força de seu lugar-comum e apelo turístico.

A fotografia é high key, um tanto lavada e estranhamente, em alguns momentos, tendendo mais ao vídeo que a algo cinemático; embora pudesse se esperar bem mais quanto ao dimensionamento imagético de algo que geometricamente deveria definir um espaço caro à trama, milímetro a milímetro: o apartamento de Clara. Enquanto personagem em si, esse espaço tanto na imagem quanto no som --- excetuando-se a audição dos discos de Clara (nem sempre congruentes com a trama) --- fica a dever. Haveria ainda o que comentar em termos puramente de sequências e articulações. Ou seja, o que diz respeito ao modo como se estruturam as partes. À montagem do filme. Pois, também aqui, não há pouca incongruência. Se n’O Som ao Redor pouca coisa acontece, esse pouco que acontece, acontece na medida para decretar um final épico. Nesse caso, a instalação dos seguranças na rua é uma das poucas coisas que de fato acontecem em meio à rotina do bairro. O romance de João (Gustavo Jahn) e Sofia (Irma Brown) ou as eventuais contrafações de pequeno traficante de classe-média e ladrão "por esporte" de Dinho (Yuri Holanda) são subtramas paralelas (e até certo ponto desimportantens ou corriqueiras) diante desse acontecimento decisivo.

Ainda assim, em Aquarius --- e isso inclui também a fotografia --- uma das melhores cenas vem da conversa entre Clara e Roberval (Irandhir Santos) na plataforma dos salva-vidas, em certo fim de manhã de veraneio. E daí vem a impressão de o quanto um talento como Irandhir Santos foi sub-aproveitado:

--A Senhora tá dando em cima de mim, é? --- indaga Roberval, para depois complementar, algo constrangido --- porque é sempre bom a gente perguntar, né? --- Eis um dos bons caminhos que poderiam ter sido explorados. Afinal, havia certa confiança e afinidade entre a patroa-banhista e o solícito salva-vidas. Reticências. Insinuações. Um substrato narrativo e plausível que posteriormente pudesse ser agregada à luta de Clara para preservar seu espaço. (Como de fato o foi, ainda que de outra forma, com menos humor, menos confluências. Menos humanidade e, por que não, menos humanismo). Então nem isso como sub-trama ocorre num enredo insosso, plano, de onde se destaca apenas, em alto relevo, o rancor de Clara-contra-o-resto-do-mundo: ---Tem mais de trinta anos, eu sobrevivi a um câncer. E hoje em dia, eu resolvi uma coisa: eu prefiro dar um câncer em vez de ter um --- diz Clara aos escroques da incorporadora que querem a todo custo demolir seu apartamento. No entanto, mais do que uma frase dirigida aos executivos da Imobiliária Bonfim, esse parece ser o lema, a filosofia de vida de Clara. Ela não precisa de amor. Não precisa tanto de filhos, sobrinhos, netos, irmãos, amigos. Pouco precisa de sexo. Nem mesmo de sua adorada música. Ou do passado, como fica evidenciado na anódina visita ao túmulo do marido --- que, de resto, nada agrega à trama. O tipo de solidão que cultiva parece resguardar muito pouco de espesso, auto-analítico, enigmático, existencial. Sua relação com a serviçal é pouco mais que protocolar. E, logo, o Edifício Aquarius, que é também uma construção que na cabeça de Clara reverbera essa mundividência, parece existir menos como elemento de apreço, de funda afeição, do que de um pomo de discórdia através do qual ela alimenta sua vontade de antagonizar não só com os inescrupulosos usurpadores de seu espaço, mas com sua filha, sua família, seus amigos e o que mais ela encontrar pela frente no calçadão, Boa Viagem afora.

Talvez, em projeto, Clara seja o paradigma de uma mulher madura, moderna, de classe média em um Nordeste cada vez mais urbano, autônomo, descentrado do Sudeste: industrializado e contemporâneo. Essa a tendência. Mas, quem sabe, a personagem pudesse ter surgido mais complexa, contraditória, vulnerável em alguns momentos. Menos fabricando seu próprio oxigênio. Dotada de certa vertente interior. Ou mais profunda, bressoniana, diversa, paradoxal, ainda que não menos solitária e obstinada. Podendo, nesse ínterim, dizer palavras com até mais contundência, embora untadas no açúcar demerara, que tanto caracteriza o sotaque, de d's e t's pronunciados, das meninas da Zona da Mata. E, sobretudo, mostrar-se um ser mais bem-humorado, ao nutrir por seu espaço (e pelos que são bem-vindos a ele), uma afeição de fato ampla, acolhedora, sincera e sinergética. Bem maior que sua atitude geral nos faz constatar no som (direcional ou ao redor) e na imagem de Aquarius, essa produção que possivelmente passará para a história como um filme menor de um realizador com um potencial extraordinário. Aju, 06.12.2016

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