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De Volta à Casa por uma Tênue Fronteira


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Conversa #2

​The Last Waltz (Martin Scorsese, Estados Unidos,1978)

Este aziago 2016 viu celebrar-se mês passado os 40 anos de The Last Waltz (O Último Concerto de Rock, Martin Scorsese, 1978). Na verdade, o espetáculo do qual deriva o documentário aconteceu --- e foi gravado --- dois anos antes, no Dia de Ação de Graças (25 de Novembro) de 1976 no salão de dança Winterland, em São Francisco. Nos planos iniciais do filme, após algumas tacadas de bilhar esboçadas por Rick Danko, a audiência se vai aproximando do local, por meio de uma câmera a bordo de um daqueles intermináveis carros dos anos 1970. Não exatamente o bairro mais limpo, arejado e agradável de Frisco. Há uma imensa fila, que dobra mais que uma esquina. E parte das luzes do letreiro do clube não acendem, quando cai a noite. As ruas são sujas. As pessoas, sem portarem smartphones, claro, conversam entre si. Há uma sordidez ambiente que faz lembrar uma cidade de Terceiro Mundo. The Last Waltz é simplesmente o mais épico documentário jamais produzido sobre um grupo de rock. E, se em vasta medida essa grandeza vem de quem o captou, Scorsese e uma equipe estelar de cinegrafistas, que inclui Vilmos Zsigmond, László Kovács e Michael Chapman; em ainda maior medida esse senso épico é emprestado por seu assunto. À época, a The Band era o tipo do grupo mais reverenciado pelos pares que pelo público --- apesar de contar com sua legião de fãs, e uma moderada vendagem de discos. Ao longo das décadas, no entanto, suas ações têm subido estavelmente na volúvel bolsa musical. Não é segredo para ninguém que George Harrison e Roger Waters eram fãs de carteirinha da banda. E Clapton ouviu seu disco de estreia, Music from Big Pink (1968), com tamanho entusiasmo, que não só deixou o Cream para trás como chegou a cogitar unir-se ao grupo. (Mas também a que grupo Clapton não cogitou fazer parte?) Já a colaboração entre Dylan e The Band, além de documento vivo da absorção, via instrumentos elétricos, da música de raiz norte americana pelo rock, também rendeu as celebradas Basement Tapes, além de parcerias inolvidáveis, como a belíssima “Tears of Rage” (Richard Manuel-Bob Dylan), que trata do ressentimento de pais do meio rural diante de uma filha que volta para casa tratando-os de modo ríspido e derrisório depois de passar pelo "refinamento" de uma educação universitária. Toda uma série de episódios gravitam em torno do concerto conformando uma verdadeira mitologia: um pânico escênico de Robbie Robertson horas antes do show, que foi contornado pelo hipnotismo de uma espécie de curandeiro; a presença de Dylan, que só se confirmou no último minuto; certa mancha branca no nariz de Neil Young, que precisou ser removida com efeitos especiais; o visível desconforto de Levon Helm nas entrevistas diante de um projeto produzido por Robertson e para Robertson aparecer como a estrela da companhia; o fato de que se László Kovács não houvesse expressamente desobedecido as ordens de Scorsese, e deixado sua câmera ligada, se teria perdido a emblemática performance de Muddy Waters; e por aí vamos. Boa parte dos integrantes da The Band, antes de se lançarem como atração principal, fizeram parte da banda de apoio de diversos artistas. E, em especial, da que cercava Dylan na turbulenta turnê mundial de 1966. A tensão não era pequena. E aonde iam, eles eram vaiados e hostilizados. Em Manchester, por exemplo, alguém na plateia chamou Dylan de “Judas”. Dylan respondeu chamando o sujeito de "mentiroso", virou-se para os músicos e atacou uma frenética interpretação de “Like a Rolling Stone” com a banda soando em fúria, no limite máximo dos amplificadores. Mas, The Last Waltz sobreveio dez anos depois disso. E por esse tempo The Band já havia gravado seus melhores álbuns: Music From Big Pink (1968), The Band (1969) [também conhecido como The Brown Album] e Northern Lights – Southern Cross (1975), que, de resto, compõe a base do repertório apresentado no filme. E o próprio filme se constituiria numa celebração e despedida de 16 anos de turnês e incontáveis sessões de estúdio dessa banda canadense que contava com um baterista americano. Há sobretons elegíacos nesse documentário musical. Uma tristeza salpica a aparente atmosfera apoteótica do filme. E não só nos bastidores, durante entrevistas em que os músicos se revelam mais anti-heróis que qualquer outra coisa. (Inclusive, admitindo que, prévio à fama, praticavam pequenos furtos em supermercados nova-iorquinos, porque não tinham dinheiro para comer). A bravura do grupo vem de sua resistência e está centrada justamente em torno das idiossincrasias de seus cinco integrantes. O talentoso e auto-destrutivo Richard Manuel (voz, piano, bateria) --- à altura do filme já fragilizado por anos de auto-indulgência: alcoolismo, drogas, e condução perigosa de veículos. O estóico Levon Helm (voz, bateria, bandolim). O jovial hippie Rick Danko (voz, baixo, rabeca). O maestro Garth Hudson (piano, órgão elétrico, sax tenor e quase qualquer instrumento imaginável --- espécie de Hermeto deles lá). E o pragmático guitarrista Robbie Robertson, autor da vasta maioria das tensas e brilhantes canções da banda. Havia também um grande senso de companheirismo e complemento musical. Basta dizer que o grupo contava efetivamente com três diferentes vocalistas, dois bateristas, e um impulso de revezamento entre os instrumentos dada à versatilidade musical de seus integrantes. Essa musicalidade que condensa e destila vários estilos de música --- bluegrass, delta blues, cajun, r&b, música dos Apalaches (hillbilly), e naturalmente rock'n'roll --- apresenta-se como uma 'Americana'. Como um clássico da literatura dos Estados Unidos. Ou pelo menos tão clássico quanto são Steinbeck, Faulkner ou Flannery O'Connor em seus capítulos e contos. Ou as fotografias de Dorothea Lange e Walker Evans. A misteriosa força dessa música vem de sua solidão e dilaceramento. Vem de vozes que parecem, quanto a injustiças, tê-las sofrido mais que cometido. Há aí um 'ethos' radicalmente diverso do atual. Que passa ao largo do espírito da vingança, da compensação, da usura, do consumo dos tempos correntes. Há nela ecos de vozes que perderam. E que não teriam outra qualquer chance de se pronunciar, ou de serem aludidas a não ser por essas canções. Ecos inclusive da profunda e humilhante derrota infligida ao Sul pelo Norte, sem deixar margens para dignidade. Ecos da década de 1930 e da Grande Depressão. Tudo isso posto em música de excelência. Se os Beatles e os Stones trouxeram o espírito pop e a atitude, The Band --- por ironia, um grupo predominantemente de canadenses --- liberou o passaporte do povo estadunidense de volta às suas próprias raízes sonoras. No filme, a banda recebe vários convidados de peso: Muddy Waters, Eric Clapton, Joni Mitchell, Neil Young, Van Morrison, Paul Butterfield e tantos outros. Dylan encerra o concerto envergando um chapéu branco com penacho, sob forte difusão, e cantando inicialmente o hino “Forever Young”. (A edição, de resto, não respeita a ordem do setlist na gig). Outros destaques vão para vibrante performance de Muddy Waters em “Mannish Boy”, em que se passa algo quase da ordem do sacerdócio. O talento e descontração de Joni Mitchell em “Coyote”, e uma estonteante apresentação de Van Morrison ("Caravan"). À guisa de curiosidade, Lawrence Ferlinghetti e Michael McLlure lêem poemas. E havia outros poetas, como Robert Duncan, Lenore Kandel e Diane Di Prima, cujas leituras não entraram no corte final. “The Weight” – quiçá o tema mais conhecido da banda – é repartido com o grupo vocal negro The Staples, e gravado, a exemplo de outro par de temas, em estúdio e não durante o concerto. Há ainda o momento em que a correia (bandoleira) da guitarra de Clapton desprende, logo no seu exaltado solo de abertura para um clássico dos blues, "Crossroads", e pode-se ouvi-lo dizer “Hold on!” No mesmo instante, o guitarrista da The Band, Robbie Robertson, assume o solo, com desenvoltura, sem perder um único compasso. Tudo sob controle, pode-se surpreender a satisfação no rosto do baixista Rick Danko, ao fundo, um pouco desfocado, ao perceber que o incidente havia sido superado. O momento é de uma beleza documental ímpar. Assim como alguns dos depoimentos nos bastidores, que, de uma ou de outra forma, contribuem para desglamurizar um tanto o superestimado universo da música pop. Foi lançado um álbum triplo pela Warner, contendo também material não exposto nas imagens. Alguma controvérsia cerca esse material --- assim como a própria trilha musical do filme. Há críticos que chegam a dizer que os dois únicos sons que não passaram por um processo de 'overdubbing' [acréscimo, correção feita em estúdio] foram a bateria e a voz de Levon Helm, que teria se recusado a "dublá-las". Os fãs do grupo também se ressentem de um excessivo protagonismo de Robertson (produtor do filme), em detrimento de uma quase invisibilidade de Richard Manuel, talvez a voz mais marcante do grupo (e a presença mais vulnerável). Não são poucas as tomadas em que o guitarrista assoma fazendo de conta que está cantando diante de um microfone desligado. Sobre Robertson pesa também a acusação de creditar-se como único compositor em canções que supostamente teriam tido a colaboração de um ou mais integrantes da banda. Sobretudo o baterista Levon Helm mostra-se bem contrariado com essa situação em sua biografia (This Wheel’s on Fire). No entanto, há fontes confiáveis --- como o produtor John Simon --- que indicam que Robertson era de fato o principal compositor do material do grupo. E que chegou a propor parcerias, incentivar os outros a compor e até bater nessa tecla. Mas, ao que parece, os demais afundaram num coquetel de drogas pesadas que culminou no suicídio de Richard Manuel oito anos após o lançamento de The Last Waltz. O fato é que dois anos depois, a banda acabou reunindo-se. Desta feita sem Robertson, que, através da amizade com Scorsese, iniciou uma exitosa e lucrativa carreira de compositor de trilhas para cinema em Hollywood. Os tons de luzes caindo em profusos azuis e vermelhos sobre um palco abaixo de elaborados candelabros em que The Band eternizou canções como “It Makes no Difference” estão entre as mais clássicas e prismáticas imagens da história do rock. O próprio Scorsese aparece no filme como entrevistador, com sua voz esganiçada e nervosa. Há um momento em que acompanha Danko por um circuito de corredores que mais parecem conformar um labirinto. (Em movimento de câmera, aliás, análogo ao conhecido plano sequência de Goodfellas: o da Boate Copacabana). Chegam a uma sala onde há um console de gravação, e daí, Scorsese indaga a Danko quais são seus projetos. Este põe um chapéu à cabeça, gira um botão no console e escuta-se “Sip the Wine”, um dos plangentes temas de seu primeiro disco solo: ---Fazer, música, cara --- responde o baixista contendo a emoção sob o chapéu. A fórmula música + entrevista de bastidor estava criada para o documentário de rock. Mas tal integridade musical, aliada a essa flor da pele de quem veio de baixo, chegou ao cume, mas bem sabe que pode despencar na ribanceira a qualquer instante; está no DNA desse grupo --- do qual só há dois sobreviventes: Hudson e Robertson. Grupo, aliás, cada vez menos subestimado com o passar dos anos. The Last Waltz, com sua produção elaborada, cinematografia exuberante e dois anos de montagem, é o melhor testemunho disso. Aju 29.12.16

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