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Uma Fábula Sobre Criar, Comer e os Olhos

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Conversa #4

Okja (Bong Joon-ho, Coreia do Sul, Estados Unidos, 2017)

23 Notas sobre Okja

Sobre o bicho em si, diz o diretor Bong Joon-ho: "Para mim, o ponto de partida foram dois aspectos dessa criatura: ela tinha que ser de um tamanho considerável, e também aparentar certa introspecção e tristeza".

A fotografia de Okja é bem mais interessante que a de The Lost City of Z, embora o DF seja o mesmo: Darius Khondji.

A fotografia de Okja é um pós-cinematismo que opera bem. Algo que confina com as novidades trazidas por Amélie Poulain na década passada. Mas Khondji já havia feito uma das mais prismáticas direções de fotografia do cinema nos últimos tempos: Seven (David Fincher, 1995). E em sua lista de bons serviços prestados constam. entre outras: Delicatessen (1991), Stealing Beauty (1996), My Blueberry Nights (2007) e Midnight in Paris (2011). Não são os melhores filmes de seus realizadores, mas bons filmes,

de fotografia esmerada.

Mischief tem o sentido de estrepolia, peraltice, traquinada, traquinagem, danação, travessura. E é ao que às vezes se entrega um bicho, mesmo desmesurado e introvertido como Okja. A vontade de brincar com Mija, sua dona, está entre as cenas mais belas e lúdicas dessa fábula contemporânea. Em sua resenha do filme, o crítico do New York Times O. A. Scott diz: "Okja é um milagre imaginativo e técnico, e Okja insiste com abundante peraltice e absoluta sinceridade, que possui uma alma". Não se sabe se é para tanto.

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As cenas em que prateleiras e mais prateleiras de produtos são espatifadas por uma força exterior que adentra uma loja de departamentos ou shopping mall são apenas o supra-sumo da sociedade de consumo. Sua celebração inconsciente. E, mesmo em um filme imaginativo, como Okja, nos remete a duas instâncias: 1. a emblemática cena da perseguição da replicante vivida por Daryl Hannah, em Blade Runner; e 2. ao fato plano de a Coreia do Sul ser uma espécie de nova-rica no concerto das nações.

Naturalmente os ativistas do Animal Liberation Front (ALF) têm de ser ocidentais em predominância genética ou de idioma, porque o protagonismo definitivo em um filme de Holywood, mesmo com o progressivo enriquecimento econômico da Ásia Oriental, do Extremo Oriente, não se produz sem pelo menos o aval de ocidentais --- europeus, estadunidenses, canadenses ou australianos.

Okja é a fábula dos anos 2010, assim como os 101 Dálmatas, Aristocats e Guerra nas estrelas, fascinaram os meninos dos 70; E. T., os filmes de John Hughes e Robert Zemeckis foram as dos anos 1980; Edward Scissorhands, Rushmore e O Balão Branco, as dos 1990; os filmes de Wes Anderson e o Amélie Poulain, as dos anos 2000. São fábulas infanto-juvenis ou adolescentes, de crescimento e superação. De tornar-se adulto, de coming of age. De superar sofrimentos e enfrentar crescentes restrições. Seria aproximadamente e guardadas as proporções, o que Goethe designa como "formação" (Bildung), como no Wilhelm Meisters Wanderjahre. Talvez, aqui, no caso dessas fábulas, ao contrário de Goethe, voltadas mais para a fase tardia da adolescência que para o início da idade adulta. (Mais complexa parece ser a tarefa de Apichatpong, que grava fábulas para adultos). Mas também menos votadas a qualquer senso de sacrifício ou renúncia --- este último, conceito caro a Goethe --- uma vez que o temperamento posmoderno está muito mais à vontade no egoísmo narcisista do consumo refrigerado e na incessante necessidade de confronto. (Naturalmente de um confronto tolerado ---- e até incentivado ---- pelo mercado).

É óbvio que a justificativa dos ativistas pró-animais soa pueril. Mas o filme é feito em cima de uma premissa pueril (daí seu arcabouço de fábula). Assim como é pueril o incentivo de mercado que nutre no consumidor a ilusão de que pets podem ser sucedâneos de filhos ou de cônjuges ou de melhores amigos. Obviamente não podem. E o ponto mais pungente de comparação aqui seria o dono do pet propor seu animalzinho ainda em formação em analogia consigo próprio, quando criança. As complexidades de uma infância humana não podem ser comparadas às da criação de um animal doméstico ou mascote, por mais dóceis e fofos e seus que estes se apresentem. Ou que sejam apresentados em comerciais de arrancar lágrimas, e filmes não menos piegas. Hoje em dia há uma verdadeira especialização em produzir comercias para donos de animais. Isso é quase uma indústria paralela, com cinematografia e linha de roteiro próprias, como no caso de outros nichos: a indústria da moda, os casamentos, a revalorização de receituários e programas gastronômicos, para uma estetização da vida, da política, que confina com o fascismo pressentido por Benjamin no início do século, e re-diagramado por Débord e Deleuze em seus meados. Atente-se aqui para o modo como esses pets são produzidos para serem expostos orgulhosamente por seus donos em fotos e vídeos, nas redes sociais. Certa instância neo-fascista da vida passa por esse superprivilégio do pet pelo mercado. (Isso, a exemplo das concessões às mulheres, às minorias étnicas e aos LGBT's ---- não confundir com as causas em si, que são irreprocháveis ---- não passam, nesse aspecto, o do consumo (não em outros, evidente), de concessões de mercado, desque esse vetor predominante e influente em forjar um comportamento em escala mundial divisa, de imediato e lá adiante, possibilidades de nichos, segmentos e lucros próprios. Quer dizer, de lucros próprios com o fatiamento desses consumidores, criando, para estes, então, produtos específicos ---- ou uma própria e privada Disneylândia ---- diferentes de um mainstream já meio esgotado. E, no contexto, nunca faz mal lembrar que Hitler cuidava muito bem do seu pet, um pastor alemão chamado Blondi, Isso, evidente, soa muito longe de decretar que quem nutre amor por seu animal doméstico é um fascista. Mas que instâncias fascistas, reterriorializadoras estão atentas para o potencial de mercado a ser explorado a partir do afeto do dono, o que não exclui, claro, vinhetas, canções pop, filmes, VT'S publicitários, jingles, design de produtos, features, séries, etc.).

Não deixa de ser revelador quando, no momento em que Lucy Mirando (Tilda Swinton) fala acerca do sucesso que foi a criação dos porcos gigantes, isso se dar através da citação de revistas. Um tanto como se se tratasse de uma crítica de filme, happening, ballet, álbum de música, concerto, obra arquitetônica ou peça de teatro. Ou seja, combinar mutações genéticas --- ou algo dessa ordem, da ordem dos negócios, resultando em um produto comestível: o super-porco --- se ter convertido em uma instância assemelhada à da produção artística, uma vez que recebe a mesma valoração estética: uma sorte de resenha. Os super-porcos da Mirando são admirados por sua beleza e cultície. Não por outra coisa. E assim avaliados em jornais e revistas, como o New York Times ou a Slate. "São tão fofos que dá vontade de comê-los". Aliás, essa frase em português ampliaria imensamente algo que já está apenas sugerido, em inglês.

Lucy Mirando é a nova Malvina Cruela. Mas é difícil hoje fabricar uma Malvina Cruela que consiga bater a sordidez da realidade: o Presidente Trump consegue ser mais vil e repugnante que qualquer Malvina Cruela num conto infanto-juvenil audiovisual, marcado pela preponderância das imagens publicitárias (na concepção geral de sua fotografia, efeitos e pós-fotografia --- mas não por isso menos interessante).

No emprego da trilha sonora, não deixa de ser estimulante ouvir um tango na sequência da chegada do super-porco em Nova York. (E não um ragtime, um blues, um tema jazzístico, um rock, um country evocando estradas; mas um tango rasgado). Boa escolha. Ou ao menos tão boa quanto a serena balada pop empregado na cena da perseguição pelas alamedas do shopping-center de Seoul. Por seu turno, uma bossa nova upbeat --- bem pastelzinha, bem cosmética, bem composta para música de elevador ou papel de parede, tão irrelevante quanto um gracejo num programa esportivo --- é ouvida no instante em que Johnny Wilcox (Jake Gyllenhaal) guinda ao palco a "poderosa" Lucy Mirando (Tilda Swinton). Mas é inevitável que após o resgate de Okja, caminhando pelo vale da morte que é o abatedouro, escute-se música sacra. Pois mesmo uma sociedade e uma causa laicas, como a de nosso tempo e a da defesa de animais criados em serialidade industrial (ou por engenharia genética) e abatidos para consumo; precisam desesperadamente catar uma justificativa na esfera do sagrado, em sua estética sublime. Questões de tal ordem precisam ser repensadas e aprofundadas.

É óbvio que todo o "sofrimento" e "ojeriza" dos ativistas pró-animais diante do cruzamento de Okja com um super-porco macho assomam um tanto irônicos. (De onde esses ativistas acham que eles próprios saíram: de uma fralda carregada por uma cegonha, de um alface?) Quando Jay (Paul Danko) trata de consolar a bela Red (Lily Collins), por quem nutre evidente paixão platônica, aí se dá uma das cenas mais deslavadamente cômicas de Okja. E uma que certamente vai passar ao largo do espectador mais naïf.

A violenta reação de Jay (Paul Danko) diante da confissão da mentira do tradutor repassa a noção de sectarismo e autoritarismo, marca de qualquer organização de militância humana, com seu grau de censura, cegueira, proselitismo, supressão da outridade, apologia da política institucional (mesmo que em ativismo contestatório), etc. Isso anda muito sutil e bem trabalhado no filme. Mas, como dissemos, vai escapar a muitos, que só irão entrever Okja como um libelo vegano, anti-consumo de carnes em geral.

Pode-se pensar: "Puxa, Okja é o tipo do filme verdadeiramente transnacional: o diretor e a protagonista são coreanos, há muitos não descendentes de europeus do norte entre os ativistas pró-animais". E, no entanto, a noção de "sou macho e posso fazer tudo, porque sou um american self-made man - descendente de europeus brancos" --- a mesma que nutre um Trump --- está presente na cena de desculpas de Jay. Ele, através de cartelas, pede perdão à Mija. E, em seguida, sai pela janela. Lança mão de uma daquelas emblemáticas escadas de incêndio tão características dos velhos prédios de Manhattan. Ele pode. Pode tudo ou quase tudo: há simultaneamente algo de Trump e de Julian Assange, aqui. Algo que é americano, jovem, branco e ativista pró-animal. E líder de uma associação semi-clandestina. Um comando de ativismos. Um ter uma causa. Um passar pelo passeio de uma avenida nova-iorquina em plenipotência, mesmo que ao lado siga se desenrolando uma parada, um festival que celebra a excelência dos super-porcos, criados para vender proteínas animais e dar lucros a uma corporação que ele próprio, Jay, combate. No íntimo, o seu conforto é saber que, dentre em pouco, vai pôr água no chope das Mirando. É a crueza de aporias assim que torna tão completa essa fábula adolescente diante de nosso tempo. Que a torna digna de retratar um tempo em que aporias quetais afloram. Em que o conceito de indecibilidade tornou-se mais fácil de entender, na realidade mesma, fora de um livro de Jacques Derrida.

A cena da parada numa avenida nova-iorquina naturalmente paga tributo a John Hughes. E não podia ser diferente com uma cena assim em um filme infanto-juvenil. Apenas, aqui, há algo de agudamente realista: a parada é para promover produtos bastante questionáveis. E sua estrela, um abominável apresentador de televisão, de meia-idade, cheio de tiques, supostamente vinculado ao mundo animal. Mas, se observarmos melhor, é necessário lembrar que esse apresentador deu um autógrafo à Mija, lá no início do filme, ainda nas montanhas da Coreia. Se assim foi, a noção mesma de cuidado com os animais transmitida pelo apresentador deve ter contagiado e inspirado, portanto, a própria Mija, e interferido no modo de ela criar Okja.

Novamente, Tilda Swinton faz gêmeas, como no Hail, Caesar!, dos Coen.

Novamente um coadjuvante de luxo é Giancarlo Esposito. Do mesmo modo que em Breaking Bad.

A calma e delicadeza com que a protagonista segura na corda, dependurada sobre um precipício de tirar o fôlego, no início do filme, passa o recibo do artificialismo de certos impulsos transpostos para a tela. Será que ninguém percebeu isso nessa produção milionária?

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Não parece muito convincente o:

---"I'm so sorry. This is not lethal" --- diz um ativista enquanto torce o pescoço de um vigilante em meio a uma manada de super-porcos. Quer dizer, se houvesse um meio de agir que não fosse violento, esse meio seria posto no filme. Mas, desafortunadamente, não há meios de ação humana, absorvidos por uma causa "política" ou "comportamental", que não sejam violentos em determinado ponto. E, ao que parece, a cena explora esse paradoxo, mais do que simplesmente reforça a ideia maniqueísta de que o bem estaria do lado dos ativistas, e o mal, dos criadores dos super-porcos. (O que os ativistas não dizem: é preciso alimentar quase 7 bilhões pessoas num mundo cada vez mais homogeneizado). E de nada adiantam a polidez das desculpas e certo sentido de empatia humana: a dor no pescoço do vigilante será a mesma com ou sem elas.

Na fábula de Bong Joon-ho é possível que uma jovem garota, criada em isolamento nas montanhas da Coreia, salve o seu pet em Nova York das garras de um poderoso conglomerado transnacional alimentício. Afinal, é uma fábula. Na prática, sabemos --- e depois ela própria também --- que esse pet, em serialidade, teria sido morto, e suas postas de carne beneficiadas, prensadas e ensacadas para consumo humano. Ponto. Mas Okja, além de fábula, é ainda uma fábula hollywoodiana, do tipo tirem os meninos da sala. E em fábulas assim, otimistas --- mesmo na sua inteligência irônica ao tocar em certa inflexibilidade dos grupos anti-establishment, que reproduzem no fundo a mesma lógica daquilo que combatem --- os porquinhos sempre escapam do Lobo Mau. Nem sempre por mérito, mas em nome do mesmo consumo que ensacou milhares de semelhantes à Okja. E o fato de Okja ter sido salva apenas por um capricho do acaso --- ter caído nas graças e afeto de uma criança coreana tão amorosa --- não diminui os outros que, às toneladas, encaminham-se para serem transformados em repasto, fast-food.

E, tem mais, se não fossem eles, seriam outros seres vivos, vegetais incluídos.

Há certa instância de humor ao vermos Mija ao lado de uma grande posta de carne dependurada em um gancho, no frigorífico, já próximo ao final do filme. A menina contempla aquela carne tenra, recém-extraída de um super-porco e sai correndo em arrepio e histeria. As conotações sexuais de uma cena assim para uma adolescente --- e até para certo público adulto --- guardam ressonâncias verdadeiramente cômicas.

O filme é delicioso, de uma candura e assepsia de fazer gosto. E compele visualmente.

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Sem dúvida, a cena mais hilariante é quando, confrontados na fábrica, a empresária e o ativista político trocam farpas. Na verdade, atingindo o zênite nas seguintes, impagáveis, falas:

---This is business --- diz a certa altura uma Tilda Swinton com dentes falsos, proeminentes.

---Hey, Nancy, I hold all creatures near to my heart, but you're crying out to be an exception --- diz o ativista Jay (Paul Dano).

---Oh, Okay --- diz a empresária. E então ela olha para o operador e faz o sinal com o polegar para baixo, ao modo dos imperadores romanos.

Logo em seguida, em vez da lenga-lenga sentimental do ativista, Mija fala uma linguagem bem mais inteligível à empresária. E dela compra Okja com a miniatura de um porco em ouro maciço, a que havia ganho do avô, por dote ou herança antecipada. O humor sinistro dessa fábula poderia rivalizar com alguns dos grandes momentos de humor negro e nonsense nos filmes dos Coen, e das esquisitices juvenis de Wes Anderson.

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Ainda assim, Okja --- mais que Life of Pi --- é a fábula cinemática da década até aqui. A que narra, que reconta a perda da inocência juvenil diante da aspereza do mundo. Ainda que a realidade numa fábula assim seja edulcorada, mais suave que na vida real. Pois, como diz o velho e bom Belchior, morto há cerca de dois meses: "a vida é muito pior". Ou seja, quase sempre não se acaba numa simpática cabana nas idílicas montanhas coreanas, cuidando de um animal magnífico e de um avô sábio.

[05.07.2017]

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