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No Ápice ou A Melhor História

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Conversa #6

Their Finest [Sua Melhor História (Pt-Br), Lone Scherfig, Reino Unido, 2016]

Their Finest tem a ver com uma roteirista, Catrin Cole (Gemma Arterton), a serviço da propaganda britânica na Londres da II Guerra. Nele, se há um ruído que soa heróico, é o das teclas de muitas máquinas de escrever soando em simultâneo, no mesmo ambiente, e lembrando onde de fato começa um filme. Mas também soa de um heroísmo ---- datável, estóico ---- esse lidar dos londrinos com bombardeios (e o único reparo que se pode fazer, aqui, é a pouca quantidade de filmes alemães que tematizam o sofrimento dos civis sob as atrocidades cometidas pelas tropas aliadas. Para cada Coventry há uma Dresden. Ou seja, a contrapartida do que se vê em filmes como Their Finest).

Essa comédia romântica é uma produção de época, mais ou menos modesta para os padrões de hoje --- embora não tão modesta assim --- e contando uma história divertida, tendo ao centro uma heroína, claro. Ela faz parte de um trio de roteiristas. Eles trabalham num script sobre a Retirada de Dunquerque. Mas esse episódio épico contado do ponto de vista de duas irmãs, britânicas da província, que o testemunharam e participaram do esforço de guerra ao supostamente terem conduzido à Inglaterra soldados aliados no barco do pai.

No entanto, ao encontrá-las, Catrin constata que, na verdade, elas haviam sofrido uma pane nas águas do Canal, e por acaso foram levadas à deriva na direção de Dunquerque, para depois terem sido rebocadas pelas centenas de embarcações em fuga. Interessada em assegurar a história a qualquer custo, Catrin omite essa informação crucial, quando retorna a Londres. O financiamento ao projeto é avalizado, e eles começam a escrever o roteiro, "baseado em fatos reais". A trama também revolve em torno de um carismático ator de meia-idade (Bill Nighy).

Catrin vive com um artista plástico que, ao ter participado da Guerra Civil Espanhola, saiu com sequelas em uma das pernas. De imediato, ao se ver um dos quadros dessa personagem pode-se lembrar de L.S. Lowry. (O aspecto geral do filme, aliás, parece ter um débito para com as telas de Lowry. Mas Lowry, famoso por seus "homens palito", era de Manchester).

Jeremy Irons está excessivo enquanto Secretário da Guerra. Caricato ao citar o Henique V para a equipe de roteiristas e, logo a seguir, assoar o nariz. Peremptório ao assegurar que o esforço da equipe de argumentista passa por três trunfos: 1. cativar o público interno, britânico, ao propor gente comum como herói; 2. o fato dessa gente simples ser mulher e, portanto, incentivar as súditas da rainha e suas irmãs americanas a participar do esforço de guerra; e 3. o apelo que tudo isso têm para um público que os britânicos desejam ardentemente cativar: o estadunidense. Mas a participação de Irons, que tem trajetória bastante irregular como ator, é episódica no filme. E se não chega à antologia, também não compromete.

No entanto, o ítem 3, conquistar o público americano, traz implicações seríssimas para a produção do filme sobre Dunquerque. Sérias mas também muito divertidas. O ator contratado como o americano voluntário no esforço de guerra, não é ator profissional, senão de fato um militar voluntário, engajado. O resultado é ter de se repetir --- no filme ficcional do qual Catrin é uma das guionistas --- 26 vezes um take relativamente simples de gravar. (Mas isso ainda entra na conta das piadas de britânicos sobre americanos, que são talvez ainda mais frequentes e mordazes que as de brasileiros sobre portugueses. Ou vice-versa).

A fotografia dos interiores, sombrios, com figuras silhuetando-se contra a luz quebrada, de muitos dias chuvosos, que filtra-se pelas vidraças, é um dos trunfos de Their Finest. Ela é mais efetiva que as externas. Algumas das quais ambientadas em cenários construídos, e não de todo satisfatórios. No entanto, ao passar às locações do filme fictício, à beira-mar, também as externas passam por um upgrade. Óbvio que a doença maior de nosso tempo a "sobre-estetização", a glorificação de qualquer tarefa, qualquer ocupação que tenha a ver (nem que de raspão) com arte diz presente. Como é o caso do trabalho desses roteiristas que provavelmente viam-se a si próprios muito mais como burocratas. Servidores públicos. Funcionários a serviço do Ministério da Propaganda britânico do que artistas iluminados, buscando romper barreiras de gênero ou ir de encontro a preconceitos de época.

E então o filme vai crescendo diante dos olhos. E o quesito em que ele mais cresce é importante: charme. Para esse quesito, é decisiva a contribuição de Bill Nighy. Ele assoma com um imenso potencial cômico ao propor um galã envelhecido, tão canastrão quanto esse Ambrose Hilliard com que nos brinda:

---The War, the War, damn the bloody War --- diz aos gritos, detestando a realidade que o deslocou do proscênio ao pano de fundo, como se os anos não tivessem passado. Como se ele próprio não houvesse se convertido num velhote, cheio de maneirismos e convicções tolas. (Entre estas, por sinal, encontra-se sua ojeriza por documentários). E, contudo, a despeito de sua revolta, o mundo é maior, e de fato está em guerra. O próprio interlocutor que ouve seus queixumes inanes em um pub, só será reencontrado alguns dias depois na forma de cadáver, após um bombardeio.

Em outra cena antológica, já na locação, Williard (Nighy) acorda toda a equipe de gravação de manhã bem cedo ao lançar-se a exercícios de aquecimento da voz enquanto se barbeia. Ou ainda, na mais divertida de todas, ele se deixa infatuar por Catrin --- com quem previamente havia tido um pequeno episódio de mal-estar no passado, e lhe diz:

---I don't think we've been properly introduced.

E por aí caminham as peripécias dessa comédia bem recortada de moldes clássicos. Mas, por igual, capaz de premiar a comicidade do papel de Bill Nighy com as melhores distinções da coadjuvância.

Estamos diante de uma comédia romântica clássica, mas também um tanto atípica. Isso implica num revigoramento do gênero. Ela ao mesmo tempo convoca elementos do filme de guerra, da comédia em si, do drama, do meta-filme, e, sobretudo, expande-se por meio de uma fotografia noir. O sombrio de seu visual e alguns de seus motivos, no entanto, não interferem em sua leveza de comédia ---- atacada apenas por certo acidente inusitado. E nisso consiste sua graça: tratar com leveza temas como o adultério, as mulheres relegadas a um papel secundário pela perversão de uma sociedade machista, a tragédia da guerra ou as vicissitudes de um ex-galã de cinema na meia-idade. A aspereza dessas questões não são suavizadas no filme. Existe, então certa sabedoria ao tratá-las num registro que não diminui seu impacto. Mas, por outro lado, também não sacrifica a inteireza de forma a um engajamento, prévio, de causa. (E assim não seriam os verdadeiros filmes políticos aqueles que, a despeito de tocar em temas sérios, não esquecem de entreter, de divertir?)

A direção fica a cargo de Lone Scherfig, realizadora dinamarquesa ligada ao Dogme 95. Ela tem títulos encorpados no currículo. Como o longa An Education, de 2009.

Mas, ah, ficar de luto ou mau humor como se fica de mau humor ou de luto nas comédias românticas. Por antecipação, a gente sabe que tudo aquilo é charme, que tudo acaba bem, que ninguém marca ninguém com um ferrete em brasa. As palavras duras, nunca são ou serão duras bastante. Nunca destroçam. Perdas se recompõe como uma cauda de calango, e vai-se estar vivo e animado de novo para empreender sempre, quase como num desenho animado. O desdém, o desprezo serão compensados por uma boa dose de generosidade, paz de espírito, bonomia. Ou um pungente pedido de desculpas. Se o mundo fosse uma comédia romântica, metade de nossos problemas estavam solvidos. Mas o gênero do mundo não pode ser reduzido aos gêneros do cinema. É mais sórdido, cheio de vais e vens, variantes, condicionais, imprevisibilidades. Perdas devastadoras. Irreparáveis. Complicações que deixariam a trama do mais intrincado noir a ver navios.

Navios? Sim. Talvez na direção de Dunquerque.

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