A Desfaçatez como Cotidiano
… Conversa #8 Bacalaureat (O Exame (Pt-Br), Cristian Mungiu, Romênia, 2016)
O Exame é a história de um médico que entra a subornar autoridades da polícia, da administração e do sistema educacional romenos para assegurar o acesso da filha a uma bolsa de estudos em uma prestigiosa universidade inglesa. Isso se dá mediante fraude de exame escolar, de uma forma específica de prova ao final da graduação: o Bacharelado (Bacalaureat) --- análogo ao exame que ocorre na França ao fim do secundário. O filme também desnuda, a partir da corrupção do sistema educacional, a ambiência geral de degradação da sociedade daquele país ---- numa flagrante herança da nomenklatura. Com muita câmera na mão, locações em vez de estúdio e uma atmosfera que o aproxima do documentário, Bacalaureat é o 6º filme de Mungiu e, possivelmente, o mais encorpado deles: o que lhe valeu a Palma de Ouro de melhor direção em Cannes, este ano.
A performance de Adrian Titieni como o Dr. Romeo Aldea, vivendo numa obscura cidade da Transilvânia, e tomando sobre si a responsabilidade do sucesso da filha no exame da graduação; é um tour-de-force. Especialmente pelo modo como consegue naturalizar várias contrafações (adultério, irregularidades do sistema de saúde, tráfico de influência, suborno, mentiras à mulher, à filha, à amante, a si próprio), convertendo-as em atos corriqueiros, diante dos quais não se deve hesitar ou arrepender-se. Do contrário, deve-se levá-los adiante e até o fim, como se no jogo da vida, eles fossem imprescindíveis ao êxito social.
De algum modo o Dr. Romeo Aldea nos remete para certas sugestões de Hannah Arendt. É a banalização do mal em escala micro. Poucos personagens em 2017 aparecem tão complexos e bem recortados como esse médico romeno da província ocupado com o futuro da filha. E poucos filmes conseguem traduzir o cinza, o oco, a banalidade de um cotidiano marcado pela mentira e uma desonestidade supostamente a serviço de ideais mais vastos e compensadores.
Chama atenção no filme o quanto em contraste à sordidez exterior de edifícios públicos, escolas, hospitais e, em especial, moradias, os interiores assomam tão mais aconchegantes e confortáveis. E, claro, o que isso indica: a total desarticulação entre espaço público e mundo privado.
Também impressiona o modo sofrido como se expressa e vive Magda (Lia Bugnar), a esposa do médico. (A ambiguidade desta mulher, que se agasta menos pelo fato de o marido ter uma amante e mais pela circunstância da filha descobrir tal arranjo extra-conjugal). Ou ainda a quantidade de cenas em que o Dr. Romeo, um cirurgião, surge descascando meticulosamente as frutas que irá degustar --- como a sugerir que sua própria ação revela o grau de desonestidade em que se enredou sistemicamente a sociedade romena.
Mas estes são detalhes acessórios em um filme adulto, que nos conduz habilmente para a Europa da periferia, das franjas, e nos faz pensar acerca de todo um vasto mundo que não se encontra no coração do Ocidente. (Por tudo isso, raros filmes falam mais ao pé do ouvido dos brasileiros, neste 2017 de extrema desorientação política, aporias e incontornáveis paradoxos. Inclusive, quando recordamos: a resposta coletiva do povo romeno diante de uma tentativa de retrocesso na apuração de crimes de corrupção foi pontual e veemente ao contrário do que a nossa tem sido. Até aqui). ...