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... Conversa# 10 Ma vie de Courgette (Minha Vida de Abobrinha, Claude Barras, Suiça/França, 2016, -- O título em inglês é My Life as a Zucchini)
Em algum lugar entre a Suiça e a França, não muito distante dos Alpes, há um internato para crianças de olhos grandes e tristes. Elas são órfãs. De uma ou de outra forma. Seus pais: imigrantes que se meteram em encrenca e foram extraditados, junkies, suicidas, ladrões, alcoólicos, psicóticos, mortos em pequenas contrafações ou crimes passionais. Elas não têm quem as queira na idade em que é mais determinante ser querido.
Courgette (literalmente "Abobrinha") é um deles. Courgette acabou matando involuntariamente a própria mãe, num acidente doméstico. (O mais provável é que a mãe houvesse morrido do mesmo jeito, de tanto beber). Courgette transformou a lembrança do pai numa pipa em que se vislumbra um super herói. Da mãe, guardou uma lata vazia de cerveja. São suvenires.
Levado a um reformatório por um policial que acaba afeiçoando-se a ele, o garoto --- que tem talento para desenho e escreve boas cartas --- após um começo difícil, encontra um grupo de camaradas nessa comunidade de órfãos. Dela, Simon é uma espécie de líder. Simon de início parece intratável e perseguidor. Mas isso até o humaniza, quando se percebe que certo veio sádico a princípio não é mais que defesa e sonda. Todos ali se parecem com Courgette: têm olhos enormes, lânguidos e traumas com pais.
As figuras dessa animação em stop-motion são longilíneas. Possuem braços desmedidamente longos, cabeças descomunais e, nas mãos, apenas quatro dedos. Uma aura de melancolia os reveste. O mundo à volta --- casas, carros, objetos, o velho prédio do internato, a antiga mansarda em que vivia Courgette --- é um charme só. Eles não possuem a mesma desenvoltura de movimentos de um desenho da Pixar ou da Dreamworks. Mas compensam isso com boas conversas e uma história.
No internato, Courgette também descobre o amor, na forma de uma garotinha chamada Camille. Um passeio a uma estação de esqui, às expensas de um professor e de uma cuidadora, que formam um casal --- ambos trabalham no reformatório --- pode revelar crianças com grande predisposição para dança, jogos e a fruição da natureza. Para felicidade.
Mas, logo em seguida, a comunidade dos órfãos, após praticamente ver Camille subtraída por uma tia inescrupulosa, interessada no subsídio estatal, consegue reavê-la para o alívio de Courgette. O plano de reintegrá-la foi bolado por Simon. No entanto, ironicamente, o policial bigodudo, que costumava visitar o garoto, termina por adotar Camille e Courgette separando-os da comunidade do reformatório. Parece que aqui insinua-se: perda é inerente à vida. Se ela não vem pelo lado do vexame ou do luto, há de vir pelo da felicidade. Nesse ínterim, nasce o filho da cuidadora com o professor. Na cenal final, ele encontra-se em seu carrinho nos jardins do internato, cercado em curiosidade pelos órfãos. O bebê semi-adormecido escuta, então, um verdadeiro mantra. São os internos a dizer que, sob nenhuma hipótese, a mãe deve abandoná-lo:
---Même s'il pète. ---Même s'il est bête. ---Même s'il pleure tout le temps. ---Même s'il a un cou de girafe. ---Même s'il est punk.
Esse desenho para gente grande move-se por compassividade. Há nele algo de Dickens. De Emile Brontë. Algo do cult sueco Minha Vida de Cachorro (1985). Algo que versa sobre órfãos exemplares. E, no entanto, o desfecho feliz não nos deve enganar. Não remenda a irreparável tristeza nos olhos expressivos, vastos como lagos. Há neles algo parecido com a palavra inglesa 'yearning'. Ou com a alemã 'Sehnsucht' --- a saudade do que não se teve, do que poderia ter sido. Principalmente nos olhos de Simon. É que este parece supor que mesmo o mais elevado gesto de aceitação, amor, altruísmo, não vai estar à altura de reparar perdas, feridas, traumas, demasiado contundentes tão cedo na vida. [Fortaleza, 12.07.2017] ...