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Rivotril, Lexotan e a Prataria da Vovó


Conversa # 13

I Don't Feel at Home in This World Anymore (Macon Blair, Estados Unidos, 2017)

Ruth (Melanie Lynskey), assistente de enfermagem, começa a ter uma visão sombria da humanidade depois que alguém invade sua casa e furta seu notebook, um candelabro de prata que pertencera à avó e seus ansiolíticos. Presta queixa. Mas sequer a polícia se dispõe a lhe dar real atenção. Nesse mesmo dia, no hospital, morrera-lhe uma paciente depois de rogar pragas e dizer cobras e lagartos dos Estados Unidos, dos Estados Desunidos, dos homens, das mulheres e do ser humano a granel. Inevitável que Ruth viesse a corar, quando depois um familiar da falecida lhe veio compungido indagar sobre "as últimas palavras" Após o furto, Ruth percebe com crescente nitidez a sordidez das pessoas atropelando-se no trânsito, no trabalho, no supermercado. Agindo sem consideração, umas para com as outras. Qualquer um que não esteja calçado nos sapatos dela parece empenhado em lhe dar a mínima. Mas não só. Trapaceia. Joga baixo. Tenta levar vantagem. Aplicar-lhe o golpe. Mostra-se competitivo em situações mínimas. Isso faz Ruth entrar em parafuso, confessar à Angie (Lee Eddy), vizinha a quem presta serviços de babysitter, todo o seu desencanto. Um surto de misantropia aliado a um princípio de depressão.

Ora, o que há nesses eventos, descontada certa dose homeopática daquele humor sombrio de Coens, Tarantinos, Andersons (Paul e Wes), ainda nos faz crer que temos por diante um drama. E até certo ponto, convencional: os temores da assistente de enfermagem contra a sordidez egoísta do mundo cão. Isso faz com que Ruth perca as estribeiras diante de um vizinho meio nerd --- ou nerd e meio. Dia após outro, ele ignora um aviso fincado no solo do jardim de Ruth: não se tolera cães deixando adubo não solicitado sobre a grama (já que para tal fim a grama do vizinho sempre parece mais verde). Para sua surpresa, Tony (Elijah Wood), o vizinho, quando interpelado, desculpa-se com veemência. Mas essas não passam de estrepolias iniciais de uma dupla improvável, que aos poucos também descamba para uma ligação afetiva, embora retenha pouco do glamour e uma falta de jeito inabitual em casais assim, da tela. O certo é que, ao combater o invasor da casa, um viciado em pedras de crack, Christian Rummack, Jr. (Devon Graye) eles acabam fazendo frente a traficantes e ao pai do junkie, um milionário que gere negócios escusos, anda para cima e para baixo escoltado por um guarda-costas, e é casado com uma mulher exótica que prepara um elogiado capuccino espumante e nutre um desprezo sem fim pelo enteado. Numa das cenas mais hilárias, Ruth acerta o pomo de Adão de Christian, o assaltante, com o molde em gesso que ela produzira a partir da pegada deixada por ele, no primeiro assalto. O mesmo molde em gesso que um policial recusara-se a examinar como prova. (Ah, as reviravoltas previstas num bom roteiro!). Muitas peripécias depois, já próximo ao epílogo, encontramos Ruth tentando salvar a vida de Tony num bosque pantanoso, após uma cena de emboscada digna de Tarantino. O resultado: ela sair do bosque conduzindo Tony desacordado e agonizante, e um traficante de crack (David Yow) perseguindo-os, mas esbarrando nas coníferas com uma cobra mordendo-lhe a face, como fosse apêndice da mesma. Mais trash, impossível. Dizem que Okja é a primeiro grande realização da Netflix. Pode ser. (E o pudor da assistência em Cannes, diante de uma produção assim, faz lembrar da passeata contra a guitarra elétrica na década de 60, tal como relatada por Caetano Veloso).

Mas em I Don't Feel at Home... há mais do que se rir do que em Okja. O desempenho de Melanie Lynskey é uma dádiva. O de Elijah Wood não fica muito atrás. A migração de gêneros do aparente drama inicial para a moderna comédia negra e para o trash é empreendida com destreza, neste filme que surge interessante justamente por sua enganosa modéstia: parecer-se com uma comédia para TV. Para Sessão da Tarde. Em tempo, o debate entre a legitimidade ou não da entrada em cena das operadoras de streaming é artificial até certo ponto. Faz tempo que o cinema é mais que a sala de cinema, que as dimensões de sua tela. Faz alguns anos que o filme, não é mais só filme --- isto é, película. O cinema, fora da sala de cinema, está há sete décadas na TV, esteve no VHS e está numa miríade de superfícies pós-web e o advento do digital. Pode-se, sem desassombro, vê-lo no smartphone. Porém o filme não morreu, nem vai morrer por conta disso. Está mais vivo e proliferante que nunca. (E, claro, também está diferente).

Por sua vez, é evidente que o debate não é artificial no momento em que discute outra coisa --- que não dimensões de tela ou espaços e condições de recepção. Que não o tamanho da tela ou a tendência à extinção ou não das salas de cinema. Ou os "novos" pontos de vista do espectador. Mas justamente uma outra tendência. Esta da ordem econômica mais que da estética: o monopólio. Para uma gigante como a Amazon, vender filmes, entretenimento, é como vender livros: ainda uma distração que não afeta o buraco do dente de sua real fonte de lucros: o comércio na rede. Sobretudo de eletrônicos e eletrodomésticos, quase a retalho. Mas pode vir a afetar se houver um processo de açambarque do mercado audiovisual mundial por essas gigantes do streaming --- Amazon, Netflix, Youtube TV, Hulu . É mais isso que os estúdios temem do que qualquer coisa da ordem do estético. De outro modo, I Don't Feel at Home marca a estreia de Macon Blair como realizador. O fato de ser um filme despretensioso, a despeito das muitas citações, o torna compatível com seus propósitos: fazer boa crônica da suburbolândia americana, transitar a contento do pastelão ao humor negro com invejável fluência, nenhum maneirismo fotográfico ou falsa intransigência autoral. Ou seja, ele se apresenta como uma espécie de anti-Iñárritu. Traça o itinerário perfeito para se chegar à autoralidade sem a afetação do realizador mexicano. ...

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