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Quando o Filme se Faz (Quase) sem Querer


Conversa #12

Donald Cried (Kristopher Avedisian, Estados Unidos, 2016)

Num inverno rigoroso, Peter (Jesse Wakeman) retorna a sua cidadezinha, em Rhode Island, depois de vinte anos, e uma carreira nas finanças em Manhattan. Seu propósito, o de recolher as cinzas da avó recém-falecida, cuidar dos trâmites legais e retornar a Nova York o mais breve possível. Mas num golpe de azar, perde a carteira durante a viagem de ônibus.

Peter lembra-se então de bater à porta de um velho amigo, Donald (Kris Avedisian). O amigo parece bem mais entusiasmado com o reencontro. E também mais inconsciente do distanciamento de Peter em relação à pequena cidade, ao tacanho cotidiano local, às histórias do passado. Ao alheamento criado pelo vasto lapso de tempo. Mas a partir daí os dois atravessam verdadeira odisséia em direção a situações inusitadas --- algumas francamente constrangedoras --- e que, de algum modo, apontam para memória comum.

Donald é uma espécie de idiota da aldeia. Alguém que parou no tempo. Ou que nunca deixou a adolescência. Mas, por algumas horas, consegue dimensionar aos olhos de Peter a consistência do vivido, de suas experiências imprevisíveis, de sua irrepetibilidade.

No rápido intervalo que Peter gasta na cidadezinha, passa por constrangimentos que incluem a indiscrição de Donald numa lanchonete diante de uma ex-colega do secundário, acompanhada do marido e da filha. Uma visita a um amigo de escola, que se encontra na cama com a mulher, assistindo luta livre. Uma passagem no escritório do patrão de Donald que o trata com uma grosseria inominável. Uma partida de futebol americano na neve com traficantes de droga. E várias outras situações expressamente vexaminosas.

Ao tentar desvencilhar-se do incômodo guia, Peter descobre que Donald fingia ser ele, Peter, para a avó, já que esta, nos últimos anos de vida, atravessara um processo de demência num asilo. Donald também conduz Peter a locais de eleição do passado. Ambos espalham as cinzas da avó de Peter num lago, fumam maconha, voam em cipós durante uma nevasca, e visitam um velho esconderijo no sistema de esgoto, onde transcorre uma das cenas mais fortes da trama.

A falta de censura de Donald em determinadas situações pode gerar tremendos desconfortos. Mas aparentemente esse adulto de meia-idade esqueceu de crescer: ainda mora com mãe, tem no quarto um pôster autografado por uma atriz pornô, crê que os amigos do colégio têm o mesmo impulso gregário que se tem na adolescência, e chega a interromper o idílio de Peter com uma conhecida de tempos idos numa festinha.

Apesar de um ou outro passo um pouco fortuito e da fotografia semi-amadora --- mas com algumas soluções verdadeiramente engenhosas --- este filme produzido com parcos 46.000 dólares, é bastante coerente, nada tem de desconexo: Donald Cried expande-se por uma hiper-realidade onírica, que chega a lembrar After Hours (Depois de Horas, pt-Br, Martin Scorsese, 1985). Só que feito com um sobre 50 avos do orçamento desse filme do propalado"yuppie nightmare cycle".

A seu modo, também lembra Cassavetes. (Inclusive no emprego de parentes, e na escassez da equipe técnica). Em especial, há o poder da fala, a verbosidade, em parte improvisada, característica dos filmes de Cassavetes ou de Eric Rohmer --- neste último, talvez mais provinda da ordem do escrito. Embora esteja ausente a implícita dignidade e emprestada por Cassavetes às mulheres e quase sempre encarnada por Gena Rowlands.

No entanto, o desempenho de Avedisian como ator é para todos os efeitos irregular. O contrário é a performance de Wakeman, o amigo constrangido: não só consistente como promissora. Na pele de Peter, ele empresta certa dignidade à sua personagem que a expressão facial --- de um patetismo fixo --- de Donald (Avedisian) nem sempre logra atingir.

A impressão definitiva é a de que este filme se tornará um cullt, no correr dos anos. A exemplo de outros de baixo orçamento e alguma pegada ou substância, caso de Clerks (O Balconista - pt-Br, Kevin Smith, 1994). Mas que talvez não se deva esperar muito de Avedisian. Seja como realizador, roteirista, produtor, mas principalmente como ator. (Funções que acumula em Donald Cried).

É que Avedisian parece ter gasto nessa produção um talento que não comporta mais que esse filme divertido, na fronteira da ficção para a realidade. E nessa fronteira, não por opção. Mas justamente pela necessidade de driblar as limitações, inclusive orçamentárias. Há certo realizador em Sergipe que poderia ser posto em paralelo com Avedisian. E está sempre a fazer um filme. Isso, sobretudo para ele, não deixa de ser importante. Uma terapia.

Todos, menos ele, notam que é o mesmo filme. Este, também aqui, parece ser o caso, se houver desdobramentos. Ainda que Avedisian seja bancado por uma produtora disposta a se arriscar, provavelmente a aposta redundará num Donald Cried mais cosmético. Replicado sem o charme que a capacidade de driblar limitações demonstra --- como um antídoto, uma cura --- neste pequeno filme espirituoso.

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