29 rodeios suscitados durante uma (re-)assistência de Hell or High Water.
... Conversa #15
Hell or High Water (A Qualquer Custo (pt-Br), David Mackenzie, Estados Unidos, 2016, cinematografia de Giles Nuttgens)
1.
Embora ainda sem nome, criou-se um novo gênero: filmes estadunidenses feitos no Sudoeste. Do Deep South ao Texas, transpondo mesmo para o Novo México, o Arizona e o sul da Califórnia, atravessando os estados do Colorado e de Nevada. Região de desertos formidáveis, fronteiras, montanhas, lagos, planícies a perder de vista, de uma velha cidade cosmopolita em decadência (New Orleans) e uma nova cidade cosmopolita em floração (Los Angeles). Estes Estados Unidos mais recentes, mais rentes à fronteira nos têm dado filmes como No Country for Old Men (2007), Los tres entierros de Melquiades Estrada (2006), There Will Be Blood (2007), Sicario (2015) e vários outros dos irmãos Coen e de Wes Anderson --- que é texano --- bem como a série televisiva Breaking Bad (2008-13). Soderbergh, sulista da Geórgia, ambienta seu primeiro longa, Sex, Lies and Videotape (1989) em New Orleans. David Lynch propõe seu Mulholland Drive (2001) entre os incontáveis filmes realizados em torno de Los Angeles e vales adjacentes. Um destes vales, San Fernando, conta como o universo de referência de Paul Thomas Anderson. Robert Altman era sulista e escolheu predominantemente o Sul e o Oeste como a locação de alguns de seus principais títulos: The Long Goodbye (1973), Nashville (1975), The Player (1992), Short Cuts (1993), Kansas City (1996). Mas também Jacques Tourneur, Nicholas Ray, John Huston (sulista do Missouri, como Altman), Sam Peckinpah, Terence Malick e David Fincher cansaram de fazer filmes nessa zona entre o deserto, o lago, a montanha e o México. O Sul e o Sudoeste dos Estados Unidos, muito mais convulsos e compósitos que o Norte indicam a fronteira, o limiar. E aí foram produzidos a melhor porção dos grandes filmes das últimas décadas.
Para alguns dentre esse gênero de filme gravado nos desertos, montanhas, lagos e vilarejos (com cara de provisórios, de acampamento) do sudoeste, deu-se o título meio cediço de neo-western. Cediço porque os motivos desses filmes nem sempre coincidem com os do western, embora sejam gravados nos espaços em que o western era gravado em anos passados. E sob esse rótulo caberiam filmes e sensibilidades tão distintos, feitos em diferentes tempos, quanto Brokeback Mountain (2005) e Raising Arizona (1987), passando por The Lusty Men (1952) The Misfits (1960), Fat City (1972) e Wise Blood(1979) --- os dois últimos entre os "grandes pequenos filmes" de Huston. E, quem sabe, até o The Heart is a Lonely Hunter (1968) de Ellis Miller, alguns dos filmes de Malick --- Badlands (1973), Days of Heaven (1978) --- chegando ao subestimado Scarecrow (Jerry Schatzberg, 1973). Duas coisas são certas: 1. o neo-western semelha apenas ser um sub-gênero desses filmes locados no sudoeste; e 2. Hell or High Water pode inscrever-se satisfatoriamente nessa lista precária e contestável.
2.
Há duas frases de Flannery O'Connor, muito citadas, que, no Brasil, poderiam sem favor ser ditas para descrever a relação entre escritores nortistas/nordestinos e sudestinos/sulistas. Com a diferença de que há uma inversão: quando ela diz Sul, leia-se Norte. (E, em nosso caso, sobretudo Nordeste):
Whenever I’m asked why Southern writers particularly have a penchant for writing about freaks, I say it is because we are still able to recognize one.
Anything that comes out of the South is going to be called grotesque by the northern reader, unless it is grotesque, in which case it is going to be called realistic…
3.
3 tours in Iraq but no bailout for people like us.
3 excursões ao Iraque mas nenhum financiamento [de casa própria] pra gente.
É o que se lê num grafito ao início de Hell or High Water:
4.
Em Hell or High Water se dá também a exploração de certa arquitetura provisional e kitsch, do West Texas e do Novo México. Tal arquitetura funda sua própria beleza por via dessa provisoriedade, dessa breguice. Do recente da colonização e de certo amestiçamento com o Latino, que tanto atemoriza o homem branco, saxão e protestante (o propalado WHASP), bem mais racista por razão de estado que gente historicamente mais compósita, como portugueses e mouros. Europeus do sul em geral. A câmera de Giles Nuttgens, um cinematografista britânico, parece tirar dessa circunstância um exótico bom que também se depreende do olho de gente como Robby Müller --- holandês nascido no Caribe --- o diretor de fotografia de Wenders em filmes como Paris, Texas (1984), e de Jim Jarmusch em Down by Law (1986) e Dead Man (1995). São olhares europeus sobre uma paisagem da outridade. Uma América bem mais diversa e 'americana' que a assepsia ianque, europeia, puritana da Nova Inglaterra. Ou que o cosmopolitismo nova-iorquino:
5.
É assim que se vê a paisagem nos esplêndidos planos iniciais de Hell or High Water. E não seria nenhum favor se o filme houvesse vencido no quesito melhor fotografia na premiação da Academia. (Uma categoria para a qual sequer foi indicado). E, contudo, falar de planos "esplêndidos" neste filme é um truísmo. E talvez aqui se tire o intervalo de o quanto um bom roteiro e um diretor podem fazer valer um fotógrafo que, de outro modo, não estaria a serviço do filme "daquele" jeito. Pois basta lembrar que em nenhum filme anterior de Nuttgens há qualquer notoriedade fotográfica. A fotografia é correta, mas longe das chispas de poesia presentes em Hell or High Water. [Isso inclui a comédia Saint John of Las Vegas (Hue Rhodes, 2009), com Steve Buscemi --- também gravada no Sudoeste --- e talvez exclua o drama canadense Heaven on Earth (Deep Metha, 2008), que consiste num filme de certas virtudes]. O certo é que Nuttgens tem sido, desde cedo, um prodígio por trás das câmeras. Em 1987, aos 26 anos, alçou-se de assistente de câmera a cinegrafista. O mais jovem a transpor esse patamar nas distintas fileiras da BBC.
6.
Nessa paisagem do Sudoeste, as cidades parecem mais apêndices da estrada do que o contrário. Ainda. As ruas não pavimentadas, são de terra batida. Poeirentas. Quase não há calçadas. A fiação dos postes aparente e emaranhada, não subterrânea. Terra de sondas bombeando petróleo à flor da terra, de cataventos e casas de adobe ou madeira. Chalés de um só andar, acachapados, com pórticos e portas com telas anti-mosquito, que veem passar diante si as tumbleweeds. Os grandes trens cargueiros conduzem o trigo, a soja, os cítricos e o petróleo. As carnes dos rebanhos. Os trailers. Como prolongamento do ar livre, cabanas das quais se sai, sempre de camioneta, para deslizar por planícies que não têm fim. Em quase qualquer contexto, o automóvel hoje deve ser depreciado. (Nas grandes cidades brasileiras, então, execrado). Mas o automóvel nasceu para rodar nessas planícies com postos de gasolina, motéis e cassinos no meio de um nada ao quadrado. Cassinos onde se perde em frações de segundo o que se levou uma vida pra juntar.
Essas foram as terras que os Estados Unidos tomaram do México. E as que o México está a retomar dos Estados Unidos de modo mais sutil.
7.
-So you boys is robbing the bank? That’s crazy ... Ya’ll ain’t even Mexican. (sic) --- diz o velho senhor, debaixo de um chapéu texano, rente ao balcão da agência que está sendo assaltada. E uma frase politicamente incorreta, incorretíssima, como esta não conta mais uma história de injustiças, a exemplo da frase, célebre e torpe, de Borges, contumaz espectador de westerns, no História Universal da Infâmia?
Ao referir-se a Billy the Kid, Borges nos diz: "El casi niño que al morir a los veintiún años debía a la justícia de los hombres veintiuna muertes --- 'sin contar mejicanos'".
É provável que um professor que cite este trecho numa universidade mexicana, hoje em dia, seja expulso da instituição. Mas ele vai se provar um sujeito e seu humor: perder o emprego mas não a piada. Pois é preferível lembrar o que um escritor de fato escreveu do que o que supostamente ele deveria ter escrito. Assim também, quando estudamos história, o melhor é chegar o mais próximo dos fatos tal como sucederam, e não como deviam ter sucedido. Pois esse deviam ter sucedido é tarefa para um segundo momento. Walter Benjamin ensina desses momentos - e de sua hierarquia - melhor que ninguém. Hoje, os scholars ligados aos Cultural Studies e a Stuart Hall bem como cineastas tais como Tarantino e Sophia Coppola possuem um concepção de história completamente rasa.
Nossa época, na ânsia de fazer justiça com meras palavras ou vagas ideias, (ou ideias vagas em lugar de ideias )--- em filmes, peças, telas, coreografias, poemas, letras de canção, quadrinhos, oficinas, palestras ou, pasmem, na vida real, que cada vez mais é confundida com filmes, peças, telas, coreografias, poemas, letras, quadrinhos, oficinas, palestras, colóquios, quando nunca esteve mais distante disso --- esquece de que houve outras épocas, e outras instâncias de vida, outros valores, etc. E coloca essa espécie de "justiceirismo" (pistolagem, execução sumária, linchamento) como prioridade. E não tem a noção de que ao evocar esses tempos passados, recordar o que havia de mais luminoso ao lado daquilo que era sórdido e cruel, fica até mais difícil que essas sordidez e essa crueldade se repitam, que isso se retransmita, que isso se transforme em redundância, em iteração, em arma de repetição, de perseguição, de intolerâncias. Sim, intolerâncias repetidas, só que agora usadas em ressentimento pelas antigas vítimas.
Do contrário, quando se cerceia o discurso em nome de certos decoros, o teor de polícia e censura envoltos nesse ato de cerceamento e de renovado decoro, perpetua mais uma vingança estúpida --- que não se processa senão na esfera do discurso, do blá-blá-blá, na mente rancorosa de alguns--- que uma vitória da sabedoria e da concórdia, na real diferença, contra a intolerância. Ou seja, numa vitória da conversa (respeitosa, honrosa mas bem humorada) entre diferentes.
Naturalmente, em tudo isso deve-se resguardar certos bons sensos, certas proporções. Mas é para essa intolerância vindicativa que estamos educando as novas gerações. Porque isso é mais interessante. Porém, a quem é mais interessante?
Ao mercado, pode-se dizer com todas as letras. O mercado adora a cópia, a serialidade. E o mercado, em última instância é o vetor a propagar, não os aspectos vanguardeiros e libertadores --- que, sim, existem e devem ser saudados --- no politicamente correto e nos Estudos Culturais, mas sua face sombria: vindicativa, rancorosa, intolerante. A que mais confina com fascismos de várias ordens. A que mais se presta a fragmentar, cavar novos nichos de consumo. E, claro, só interessa ao mercado incentivar nichos de consumo com potencialidades, poder de compra. E para o mercado é exponencial, por exemplo, que os movimentos negros, em países tão distintos dos Estados Unidos, como o Brasil, sigam ipsis-litteris a lógica e a estética do movimento negro americano. Em cópia.
Assim também se dá com o caso das mulheres, das minorias LGBT's, dos portadores de necessidades especiais, dos idosos, dos autistas, dos migrantes, dos indígenas, do quilombolas, dos favelados, etc. Um dos problemas que enfrentamos é o de que nossas minorias --- lutando em perfeita legitimidade na América Latina, no Brasil --- não se empenham, no entanto, em pensar para além da cópia. Ou acerca da real fortaleza que implicaria romper com a cópia, e assim pensar com os próprios pés, a partir de um contexto histórico radicalmente diverso do estadunidense ou do europeu hegemônico, que lhes exporta (e dita, autoritariamente) a perspectiva, as diretrizes. Isso é um retrocesso diante da inteligência criada neste país, como o Modernismo, a música popular de consumo, o estilo de futebol, a poesia concreta, o Cinema Novo, o Tropicalismo, a poesia marginal dos anos 1970, etc. (E isso, nem por um segundo, implica em hostilizar ou menosprezar a cultura do povo dos Estados Unidos ou da Alemanha, da França, do Reino Unido. Ou diminuir a relevância de cada uma dessas causas. O que pode ser absorvido de bom nos movimentos sociais gestados por lá, deve ser absorvido. Mas quando se absorve TUDO, sem filtro, não fica mais que chorume, que água suja na esponja, pois não se filtrou a potável, que estava junto com a suja. E a primeira se contamina. É algo como remendar num tecido podre).
8.
A fantástica classificação dos automóveis pelo Major Marcus Hamilton (Jeff Bridges), ao entrevistar uma caixa de banco ainda abalada por um recente assalto:
Natalie Martinez (caixa):
---I think he ran to a car that was parked out (in) front of the dinner.
Alberto Parker (assistente do xerife):
---You saw the car?
Natalie Martinez:
--It was green.
Alberto Parker:
---How old?
---Natalie Martinez:
I don't know cars, Mister…
Marcus Hamilton (Jeff Bridges):
---Well, was it a nice car, an okay car or a real piece of shit?
Natalie Martinez:
---It was a real piece of shit.
Marcus Hamilton:
---All right. Now we're getting somewhere.
9.
Mais elegia. O momento em que um dos frequentadores da espelunca de beira de estrada vira-se para o ranger (Jeff Bridges) e diz o quanto parece datado viver de assaltar bancos:
---Já faz tempo, muito tempo que se vivia disso. Parece coisa de criança:
10.
A trilha sonora, com temas folk de Nick Cave e Warren Ellis. Mas a Academia prefere os duetos xaroposos em comédias românticas do que baladas que repassam a crônica de estradas poeirentas, viagens de costa a costa e dinheiro curto. E vagabundos ao relento .
11.
Talvez não tenha ganhado melhor fotografia porque é gráfica demais. Vejam só isso:
12.
A fotografia de Giles Nuttgens retém um colorido flamboyant, lança mão de muitos 'flares' em externas, e da luz natural, claro. Sua claridade, translucidez diáfana não tenta tingir com uma sépia pastel as cores vibrantes de uma região sub-tropical (como o faz Roger Deakins em O Brother, Where Art Thou? (2000)) . Esse colorido vívido --- inabitual em produções estadunidenses --- parece emprestado da paleta de cores do Affonso Beato de Antônio das Mortes (1969). Ou da televisão brasileira, tal como saudada por Wesley Duke Lee, nos anos 1970, logo após tornar-se colorida (1972).
A superfície das coisas, os frisos metálicos num guichê de cassino refletem a ressonância erótica da profusão de cores no que os irmãos James reinventados observam a caixa a lhe repassar fichas de jogo. Tudo a reforçar o clima elegíaco e fatalista desse western. [Ou desse 'filme do Sudoeste' (Southwest film)].
13.
Nuttgens é alguém na linhagem de Roger Deakins. São britânicos, começaram como documentaristas, etc. Mas possivelmente alguém com um olho ainda mais educado e inventivo, embora menos a serviço do grande cinema "industriável".
14.
"Indians don't suppose to feel sorry for cowboys, it's the other way 'round":
[Marcus Hamilton, em frequente provocação (bullying) a seu amigo, o assistente, filho de mexicanos e comanches, Alberto Parker. É provável que por conta dessa ninharia, tomada em esportividade e anedota pelo próprio Parker --- a quem Hamilton irá vingar a morte --- a Academia tenha receado distinguir este belo filme].
15.
As maiores citações na fotografia são, é claro, ao Néstor Almendros e ao Haskell Wexler de Days of Heaven (1978):
16.
Bullying tem a ver com o verbo 'bulir' tal como se aclimatou no Nordeste. Mas 'bulir' no Nordeste rural de tempos atrás tinha menos a ver com mimimi.
17.
Escrito em 2005, O roteiro de Taylor Sheridan estava desde 2012 na propalada Black List --- uma espécie de lista de roteiros mais desejados ainda não tomados para a realização em Hollywood.
18.
Dizer que filmes como Hell or Highwater tem a ver com fatalismo, destino, é redundância.
19.
Problemas com a paternidade, com o pai, com o nome do pai: atualização de algo que vai pelo centro de Paris, Texas (1985) e do cinema de Wenders.
Toby Howard como um espectro diante da ex-esposa e do filho:
20.
Depois de causar um sério estrago entre civis armados e rangers, Taner Howard, o baixinho, diz:
"Lord of the Plains. That's me":
Segundos depois, é alvejado na testa por Marcus Hamilton:
21.
No balcão de um cassino, Toby Howard assiste nos televisores de alta definição à reportagem da morte do irmão:
22.
O carros. Parecem deslizar num mar de luz e asfalto:
23.
Isto é quase uma fotonovela sem direitos autorais. Amanhece no Texas (na Verdade no Oeste do Novo México, onde o filme foi gravado fazendo de conta que era o West Texas):
24.
Um tira aposentado. (Há algo de Rubem Braga nessa foto de Jeff Bridges. Será que a geração mais nova sabe quem foi Rubem Braga? Esses dias, depois que lhe toquei "Drão", que ela não conhecia, minha caçula, de dez anos, disse que nunca tinha ouvido falar em Gilberto Gil):
25.
Os que têm mortos cruzado se encontram:
O irmão de Toby Howard (Chris Pine), Tane Howard (Ben Foster), matou o ranger Alberto Parker (Gil Birmingham), colega de Marcus Hamilton (Jeff Bridges). O próprio Hamilton alvejou mortalmente Tane Howard nos serrotes do West Texas.
26.
Uma cerveja na soleira do inimigo. (Nada como os velhos códigos de honra dos westerns):
27.
Por que você?
28.
A ambígua réplica final aponta para a expressão: "rest in peace":
---Maybe you give me peace.
---Maybe, I'll give it to you.
29.
Este filme de apenas quatro personagens + elenco de apoio, sem romantismo convencional, sem final feliz, é um conto elegíaco, que revitaliza o western e soma mais um clássico à grandiosa tradição do gênero consolidado por Ford e alguns poucos. Assim como o Jazz é a grande contribuição original americana no campo da música; na esfera do cinema, o western equivale-se ao Jazz.
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A partir do talento de Nuttgens como cinematografista pode-se pensar várias coisas. Uma delas é que só muita grana explica que um gênio como Lubezki ponha-se a serviço de um tranca-porteiras como Iñárritu.
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