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E você --- é ninguém também?


Conversa #14

A Quiet Passion (Além das Palavras (pt-BR), Terence Davies, Estados Unidos/Reino Unido, 2016 )

Entre os gêneros menos confiáveis encontra-se o filme biográfico. A lista de títulos que optam pelo clichê e pelo grito em vez da nuance, da fala corrente é tão extensa que quase coincide com o gênero. (Ainda bem que há Crônica de Anna Magdalena Bach (1969), de Straub e Huillet; Lisztomania (1975), de Ken Russell; Amadeus (1984) de Miloš Forman; Todas as Manhãs do Mundo, de Alain Corneau; 32 Curtas Sobre Glenn Gould (1993), de François Girard; O Silêncio Antes de Bach (2007) de Pere Portabella; alguns bons filmes sobre jazzistas: por que biografar músicos parece mais acessível?). Ao contrário das biografias em livro, as filmadas ainda não agregaram certa complexidade básica. O resultado são produções previsíveis, se vistos por alguém com um pouco mais de interesse pelo biografado. Porque um filme não pode durar 1.200 páginas, como algumas biografias impressas, um filme biográfico terá de filtrar e concentrar. E nessa tarefa perde-se uma personagem.

Não é o caso deste A Quiet Passion. E os méritos deste filme modesto só aumentam quando se sabe que trata da vida de Emily Dickinson (1830-1886). Isso porque nada de excepcional --- aventura, viagem, romance, casos extra-conjugais, sucesso, concordatas --- aconteceu na vida da grande poeta americana. Ela viveu uma existência reclusa, dedicada à família, à sua poesia. Teve poucos amigos. Não casou. E, quando morreu, aos 56 anos, já era uma anciã e muitos tinham morrido antes dela: pais, amigos, correspondentes, o sobrinho predileto.

Não é fácil lidar em filme com alguém assim. A boa solução foi a de pontuar alguns momentos-chaves, como a decisão de abandonar a faculdade em Mount Holyoke, por divergir da visão religiosa ortodoxa; certa ascendência intelectual e algum estímulo do pai; os casamentos do irmão e da melhor amiga; o nascimento dos sobrinhos; a Guerra Civil Americana; decisões muito pessoais e escrupulosas quanto à religiosidade; encontros com editores, admiradores e intelectuais; a onipresente companhia da irmã; o costume de escrever em horas mortas, na madrugada; pequenos incidentes em família; tudo isso como motivo para dizer alguns poemas. Em geral textos curtos, compressos, com acentuação muito própria e balizados pelas toantes.

A primeira das duas estrofes de seu poema mais conhecido começa assim:

I’m Nobody! Who are you? Are you – Nobody – too? Then there’s a pair of us! Don’t tell! they’d advertise – you know!

O filme segue essa estratégia à risca. Há um momento em que uma só pan pela saleta nos dimensiona a falta de vida, a contenção, o hieratismo, o insosso de um final de noite na casa de puritanos da Nova Inglaterra, como os Dickinson. Emily a rascunhar alguma coisa, o pai a ler, a mãe de olhos fechados --- talvez em preces --- o irmão passando os olhos no jornal, a irmã bordando e a cunhada investigando uma partitura. Pode-se ouvir o crepitar do fogo na lareira, o caminhar dos ponteiros do relógio, a agulha da irmã furando tecido, o passar das páginas. (Não seria mais animado do que hoje, com cada um grudado a seu smartphone).

O filme se passa em saletas assim. Austeras. Em meio a saraus, discussões metafísicas envolvendo misticismo e religiosidade, no ritmo do rufa-rufa de sedas sob um Lied ao piano. Uma única vez vai até o teatro. Mas quase sempre se detém no jardim. A predisposição de Miss Dickinson para longas caminhadas, viagens, esporte e atividades ao ar livre era: nenhuma.

Ainda assim, é possível perceber a fortaleza desta mulher. Sua ebulição interior. O modo como espontaneamente sabia sondar o mundo, as coisas, com um temperamento único. Ela foi uma estrela radiosa numa época em que as mulheres eram desencorajadas a escrever. Aqui, disciplina, exame de consciência roçam a vida monástica. Uma introspecção extrema, quase mórbida, fez com que nos últimos anos, ela sequer saísse do quarto. E mesmo quando lhe chegavam visitas, por vezes de admiradores de seus escritos, quando muito entreabria a porta do aposento, no primeiro andar e, sem transpor para o patamar da escada, conversava com o interlocutor. Este, frequentemente sem sequer vê-la, restava na saleta do térreo. Ela não consentia que ninguém, que não os da família e o médico, entrasse no quarto em que vivia confinada.

Seu hábito de vestir-se de branco na velhice também acentuou certa fama de excêntrica ainda em vida. Especialmente numa cidade pequena ---embora histórica e próspera --- como Amherst, Massachusetts, longe da costa e do cosmopolitismo de Boston (que já havia sido a grande cidade americana da Costa Leste, antes de Nova York). Por essa altura, teve a saúde afetada por uma espécie de epilepsia e por uma enfermidade renal, a Doença de Bright --- algo que é agravado pela hipertensão e o diabetes. (Hoje designada como 'insuficiência renal crônica').

Em carta a um editor, ela se descreve assim: "I am small, like the wren, and my hair is bold, like the chestnut bur, and my eyes like the sherry in the glass that the guest leaves". Diz ainda que não tem mais companhias que as colinas, o pôr-do-sol e Carlo, seu cão. Também que a mãe não se ocupa com ideias, e o pai lhe compra livros, embora implore que não os leia: "por que teme que convulsionem a Mente".

Não parece grande matéria para um filme. Mas é.

No elenco, destacam-se as atrizes que incorporam a protagonista (Cynthia Nixon) e sua inseparável, irmã, Lavinia Dickinson (Jennifer Ehle), que também morreu celibatária. Sensata, conciliadora por temperamento, sobreviveu à irmã e teve importante papel na organização de seus escritos. O veterano Keith Carradine faz o pai, Edward Dickinson. Catherine Bailey, a melhor amiga.

Talvez um único equívoco nesta produção atenta advenha do modo como se optou por registrar a Guerra Civil, através de cartelas. Essas cartelas representam batalhas, e sobre elas se sobrepõe a respectiva cifra de mortos em cada uma, e há falas (em voice over) das personagens comentando certos episódios, bem como, claro, a leitura de um poema. É que tal procedimento parece destoar um tanto da monotonia bem administrada que percorre boa parte do filme e lhe assegura uma integridade admirável.

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