Certas Mulheres
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Conversa #18
Certain Women (Certas Mulheres, (pt-Br), Kelly Reichardt, Estados Unidos, 2016)
O filme fatiado em contos, fragmentos ou episódios distintos têm sua tradição. Pode-se pensar em Night on Earth (Uma Noite Sobre a Terra, Jim Jarmusch, 1991), com seus cinco episódios, cada qual ocorrendo na mesma noite, dentro de um táxi, em diferentes cidades do planeta.
O mais comum é que ele possua três partes. Como em New York Stories (Contos de Nova York, pt-Br, 1989), em que respectivamente Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Woody Allen dizem alô. Mas não é incomum que nele as diferentes partes sejam dirigidas pelo mesmo realizador, como neste Certas Mulheres.
O filme dimensiona a contento o que é ser mulher em diferentes idades, etnias, classes sociais e ocupações na região do Montana, em 2016. Como se dá a vida nesse altiplano gélido, escassamente povoado, com florestas de coníferas, casas de madeira e uma sensação de povoamento recente.
Aqui, um tênue roçar de uma história na outra basta. A advogada da primeira trama, Laura Wells (Laura Dern) tem um caso com o marido da empreendedora e mãe em conflito da segunda, Gina Lewis (Michelle Williams). Por sua vez, a tratadora de cavalos da terceira, Jamie (Lily Gladstone) ao buscar sua professora, Beth Travis (Kristen Stewart), acaba indagando acerca de seu paradeiro no escritório de advocacia onde trabalha a primeira --- que, na cena, passa discretamente ao fundo e sobe as escadas. Ao final, há uma espécie de coda, na qual vemos a condição e/ou o cotidiano de cada uma após os eventos narrados.
O mais destacável é a banalidade desses eventos. E como por trás dessa aparente banalidade há toda uma carga subterrânea de sentimentos conflitantes. Especialmente o segundo e o terceiro episódios trabalham isso com uma coerência admirável. Isso porque o primeiro tem uma trama mais convencional e dramática: um homem perde uma questão trabalhista, e, em desespero, faz um refém, reivindica a presença de sua advogada, e acaba preso. (Vemos a situação quase inteiramente do ponto de vista da advogada, que ao chegar no local do crime assume a condição de refém).
No segundo, por sua vez, a trama é mais insinuada e subreptícia do que dita em drama. Tudo recorre em torno de uma mal estar entre Albert (René Auberjonois), um senhor de idade que mora sozinho num descampado, e uma mulher casada, Gina Lewis, que vem lhe visitar fortuitamente junto com o marido.
Albert é proprietário de alguns blocos de arenito que restaram de uma ruína, e encontram-se ao relento, em seu terreno. O desejo da mulher é o de utilizar esses blocos no embelezamento de sua casa em construção. E para tanto ela chega a fazer uma oferta em dinheiro. É visível que o dono das pedras tanto não quer se desfazer delas, como não vai com a cara de Gina. É visível também que Gina está se lixando para isso, desque tenha as pedras. Daí que Albert não responda ao aceno dela ao final, quando então ela passa para buscá-las. Talvez este seja o mais sutil dos três "contos" de Montana envolvendo "certas mulheres".
Ele, na verdade, remete para um microconto de David Foster Wallace que tem a ver com as relações, implicações sociais, na altura em que vivemos:
A Radically Condensed History of Postindustrial Life When they were introduced, he made a witticism, hoping to be liked. She laughed extremely hard, hoping to be liked. Then each drove home alone, staring straight ahead, with the very same twist to their faces. The man who'd introduced them didn't much like either of them, though he acted as if he did, anxious as he was to preserve good relations at all times. One never knew, after all, now did one now did one now did one. . Uma História Radicalmente Resumida da Vida Pós-Industrial Quando foram apresentados, fez um gracejo, na esperança de ser aceito. Ela riu forçado, na esperança de ser aceita. Então cada um tomou seu carro e foi para casa, fixando adiante, com o mesmíssimo esgar no rosto.
O homem que os apresentou também desgostou de ambos, embora houvesse demonstrado o contrário, ávido por preservar as boas relações a todo custo. Ninguém nunca soube, afinal, como se saiu fora se saiu fora se saiu fora se.
No caso do filme, é evidente que Albert e Gina não se bicam. Porém, pela circunstância social --- uma visita de cortesia --- eles têm de se tolerar mutuamente. E, mais que isso, Albert, que não teve na hora agá coragem de negar a Gina os pedregulhos, lhe tem de fazer uma concessão. Mesmo que depois se arrependa.
O terceiro conto revela de modo suave a agônica paixão de uma garota indígena, Jamie, que se ocupa de tratar cavalos na montanha, por sua professora, Beth Travis, que é também advogada, e mora em outra cidade. O sentimento é de mão única, não correspondido. Inviável e precário como seja, ele não impede que Jamie guie por quatro horas e durma na cabine de uma camioneta para tentar encontrar a outra numa cidade desconhecida. Mesmo que apenas para lhe dizer adeus.
Neste último, ressalte-se a tremenda solidão da personagem, Jamie, na cativante atuação de Lily Gladstone. Ela vive isolada, no alto da montanha, em um alojamento precário, próximo aos estábulos em que vivem os animais dos quais trata. A suavidade com que essa garota --- vulnerável, ingênua --- aproxima-se da professora é de uma sutileza ímpar. (Pois também faz supor algo violento, se escapar ao controle). A situação não favorece menos a performance da pragmática professora (Kristen Stewart). Não por acaso, esse terceiro conto tem mais tempo de edição que os dois outros somados. (Mesmo que o segundo relato talvez merecesse ter sido mais explorado).
A realizadora de Certain Women, Kelly Reichardt, também dirigiu, entre outros, o elogiado western Meek's Cutoff (O Atalho, 2011) Alguns vêem certo esquematismo acadêmico neste filme sutil. Não se sabe bem onde.
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