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Cheia de Leite da Humana Bondade


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Conversa #17

Lady Macbeth (William Oldroyd, Reino Unido, 2016)

Baseado em um conto de Nikolai Leskov, "A Lady Macbeth do Bairro Mtsensk", adaptado para a Inglaterra do Séc. XIX, temos este filme de época bem comportado, mas com detalhes enigmáticos.

Leskov como se sabe era considerado por Walter Benjamin uma espécie de arquétipo de narrador na modernidade. Por sua vez, Leskov naturalmente baseou-se em Shakespeare. Mas também pastichou um título de Turguenev: "O Hamlet do Bairro Shchigrovsky". (Esses títulos parecem ter feito escola no Leste Europeu. O escritor judeu-polonês de expressão iídiche, Isaac Bashevis Singer, tem um conto chamado "O Espinoza da Rua do Mercado"). Mas, vamos à trama.

A recém-casada Katherine (Florence Pugh) muda-se para um solar na Inglaterra rural. Passa a viver com o marido, mais velho que ela, Alexander (Paul Hilton), o sogro, Boris (Christopher Fairbanks) e alguns criados, entre os quais sua ama pessoal, Anna (Naomi Ackie). Alexander não consuma o casamento com a jovem esposa --- à noite, prefere masturbar-se, depois de pedir que ela se dispa.

Alexander e Boris deixam o solar em respectivas e longas viagens de negócio. Nesse ínterim, Katherine começa a manter um caso com Sebastian (Cosmo Jarvis), um lavrador que vive nos estábulos da casa da fazenda. Informado acerca do caso, Boris retorna de viagem. Mas Katherine envenena o sogro. Anna, a criada, testemunha caso e crime, porém fica tão horrorizada que perde a fala.

Alexander retorna em seguida e quase flagra Katherine na cama com Sebastian. Ato contínuo, Katherine com a cumplicidade de Sebastian mata Alexander. O corpo deste é enterrado numa cova rasa aberta na floresta. Katherine está livre para viver seu idílio com Sebastian. No entanto, um dia chega uma mulher com uma criança, Teddy. A mulher traz papéis que comprovam: Teddy --- de seus seis anos --- é filho de Alexander com uma sua filha e, portanto, herdeiro presuntivo do solar e da fortuna do pai.

O menino afeiçoa-se à Katherine. Mas a atenção que ela dedica à criança desperta o ciúme de Sebastian. Um dia, Teddy desaparece. Quem o encontra é Sebastian no amplo terreno da propriedade, à beira de uma queda d'água. Sebastian confessa que teve ganas de empurrar a criança para o precipício, mas relutou, e acabou trazendo-a de volta. Katherine, com a ajuda de Sebastian, sufoca o menino, que se encontrava febril.

Ao fazer a autópsia do garoto, o médico, que o havia examinado na noite anterior, acredita que ele tenha sido assassinado, pois há sinais de violência. De repente, a porta abre-se e Sebastian adiantando-se confessa que praticou o crime junto com Katherine. Mas Katherine, com resoluta serenidade, não só rebate as acusações, como sustenta que o assassinato foi praticado por Sebastian e Anna, os criados, sem sua participação. Ambos são presos. Katherine prossegue sua vida senhorial, no solar, como única beneficiária dos bens do marido.

Para dar conta desse enredo, temos por diante um filme bastante convencional. Isso, mesmo levando em conta a (boa) opção de Anna, Sebastian, a avó de Teddy, bem como o próprio menino serem negros, assim como Katherine parecer-se mais com uma mulher russa que propriamente inglesa (a despeito de ser, de fato, inglesa).

Um aspecto em desfavor do filme --- não há muitos, verdade --- é certo ir direto ao ponto demasiado rápido na maioria das situações de impasse. O filme é excessivamente explícito. Só um pouco mais, e poderia ser um filme brasileiro, nesse sentido. Tudo é mostrado, nada é insinuado, proposto em elipse. Mesmo a tensão sexual entre os recém-casados não atinge um momento e uma complexidade que reverbere em todos os cantos da casa. Não empesteia o ar que se respira.

Outro aspecto tocado no filme é a condição subalterna da mulher no Séc. XIX. (Acredita-se que o próprio conto de Leskov, publicado em 1865, é na verdade uma refração de Madame Bovary, que é de nove anos antes). Mas também, como querem alguns scholars, a personagem de Lady Macbeth hesita entre as instâncias do feminino e do masculino. Ou ao menos dos clichês que a sensibilidade da época ergueu em torno: feminino (compaixão, maternidade, fragilidade) e masculino (ambição, brutalidade, obsessão pelo poder).

Este Lady Macbeth reatualiza Shakespeare via Leskov, apontando para convenções de época que não mais traduzem a realidade da relação entre gêneros. A trama é contada com correção. (Quem sabe, pudesse ser contada também com mais paixão em certos trechos e esferas: da mise-en-scène à fotografia, passando pela trilha musical). A opção por lançar mão de atores negros não só nas condições mais subalternas é um tanto enigmática, mas também bom elemento dissonante nesse filme bem comportado. (Até porque a abolição dos escravos na Inglaterra deu-se em 1833, apenas trinta anos antes do relato de Leskov. E isso se deu, em parte, porque a população de escravos era mínima, já que havia um excedente local de mão de obra britânica branca para as fábricas de Manchester e Londres).

No momento mais audacioso do filme, após um plano em que os amantes se abraçam nus, surge o seguinte com o cavalo do marido em decomposição. O animal havia sido abatido a tiros no denso bosque da herdade, pela própria Katherine. E é da mais medonha ironia que Teddy, o garotinho, tenha dito à avó que jamais havia visto mulher tão bela quanto Katherine.

De um modo ou de outro, não deixa de ser paradoxal que uma trama assim violenta seja plasmada por um filme que é a própria fleuma britânica. Isso pode até alimentar a hipótese de que Shakespeare não era tão inglês quanto nos vendem. Ou que provinha de uma família radicada há séculos na Ilha. Mas uma espécie de pária. De descendente de trânsfugas. Um filho de migrantes, judeus ou ciganos. Ou quem sabe de um exilado russo, cuja família dividia com a de Dostoiévski um tronco comum.

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