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Sofia Coppola So Far


Conversa #22 - O Conjunto e a Obra [1]

Sofia Coppola - uma revisão a partir dos primeiros longas

Na abertura de Lost in Translation há o plano de uma bem recortada bunda. Branca, revestida por uma calcinha rosa, transparente, deixando entrever o rego, abaixo do suéter e da t-shirt envergados sob um torso que se expande para fora do quadro. Que beleza é mostrar, em detalhe, a beleza de um corpo, quando esse corpo é belo. Bresson era radical: só o corpo belo merecia ser desnudado num filme. Isso parece clássico e datado. Parece vir direto de Alberti, dos tratados de pintura do Renascimento. Do academicismo, algo empoeirado e protocolar, do séc. XVIII. Bresson e Rohmer são os dois nomes que vem de imediato. Seriam hoje considerados elitistas e católicos. Quanto talvez sejam mais políticos (no melhor senso), e anarquistas. Essa noção clássica do belo tem, portanto, um vínculo com cineastas eruditos, que mantinham um firme pé na literatura, e uma noção de forma e classicismo muito consolidada --- quase inexistente hoje em dia.

Se tem esperneado um bocado em torno disso. Contra isso. Não é de hoje. O barro protesta. O barroco protesta. Quer deformar coisas, torná-las expressionistas. Desde muito antes do Pasolini de Salò (1975) ou do cinema sequer pensar em existir, se têm feito tentativas mais ou menos regulares de pôr o defectivo e o abjeto à vista. O Expressionismo Alemão deu muitas crias. Isso é um esforço que percorre a arte, desque há arte. Mas esse não parece ser o projeto de Sofia Coppola. (Nem, aliás, um que ela seja obrigada a agregar). Nos seus filmes há aquela assepsia envernizada da garotada que cresceu num mundo já yuppie, filhos de pais yuppies. Para quem é mais fácil "estetizar" experiências. Mesmo que essa estetização volta e meia esbarre em certo filistinismo. Pareça mais com aquela manifestação contra a qual se insurgiram Benjamin, Adorno, Orwell e Debord: uma perene estetização da vida, da política, que soa problemática, e se tornou o selo de nosso tempo: a espetacularização da vida. (Muitos a confundem com política).

No entanto, só um temperamento católico teria uma ideia assim: pôr uma bunda coberta por um tênue tecido transparente num plano de abertura. Porque os saxões, puritanos, que detêm a prerrogativa dos anticoncepcionais franqueada há séculos, mas parecem pouco deles ter feito uso; são bem mais austeros que os católicos em matéria de sexualidade, corpo, erotismo, carnavalização. Aqui, basta lembrar o que máscaras de carnaval venezianas --- da Itália, terra dos Coppola --- simboliza para um judeu asquenázi como Kubrick, que se identifica bem mais com a mundividência austera, centro europeia, peculiar mesmo a um escritor austríaco liberal (Arthur Schnitzler) no esplêndido Eyes Wide Shut (1999). Mas essas máscaras também são sinônimo de libertinagem em um filme feito sete anos depois pela própria Coppola: Marie Antoinette (2006). Apenas sem atribuir à mascarada (ou seja à libertinagem) o peso metafísico ali deposto pela sensibilidade extremamente investigativa e escrupulosa de Kubrick.

Antes disso, Sofia Coppola foi atriz mirim, no Poderoso Chefão (The Godfather, 1972). E, entre outros, no Poderoso Chefão III (1991), já aos 19, fez a filha de Michael Corleone (Al Pacino), papel que lhe rendeu ser estraçalhada pela crítica, e praticamente pôs ponto final em sua carreira de atriz. Seus primeiros esforços criativos, aliás, deram com os burros n'água em termos de crítica. O episódio que escreveu em parceria com o pai para o New York Stories (Contos de Nova York, 1989) --- filme antologia que conta também com dois outros segmentos dirigidos por Scorsese e Woody Allen --- foi torpedeado pela crítica. Tivesse pouca personalidade, teria desistido do cinema. Ou talvez optado pela carreira de modelo. E ela chegou a flertar com isso. Estampa não lhe faltava. Mas o episódio do New York Stories, chamado "Life Without Zöe", hoje até que não parece destoar tanto. À época, acharam-no apenas pueril, algo mundano. Nada que nosso próprio tempo não se encarregue de reconhecer em espelho. Ou perspectivar. Então, pondo tudo em seu lugar devido, estamos em casa nele. De alguma forma.

Da beleza e do classicismo dos planos iniciais de Lost in Translation, poucos comentam. É Tóquio vista pelo olhar de quem passa num táxi do aeroporto de Narita para o hotel, olhando embevecido para o espetáculo das luzes e para a eloquente assepsia das ruas. Também há que se destacar os muitos planos em que personagens assomam silhuetados contra amplas vidraças do hotel, com uma visão panorâmica de Tóquio ao fundo. (Aliás, não existe outro filme em que os personagens são tomados, em recorrência, observando a paisagem urbana em desconcertado tédio). Assim, a questão da representação dos japoneses vivendo num mundo ultra-tecnicizado até parece fazer sentido, mesmo que o modo ridículo como são retratados em geral deva machucar. Mas só a quem é japonês.

Para estes, tal regime de imagens deve causar certa alergia. De outro modo, claro, o resto do mundo não é japonês e tem quase sete bilhões de habitantes: como é impossível fazer graça sem clichês ou condições onde se exponha a outridade como ridícula? O filme segue em frente. E o faz bem.

Há, no entanto, algo que pouco se comenta nos filmes de Sofia Coppola: o ponto de vista do protagonista. Este alterna bastante entre masculino e feminino. Isso não quer dizer que a sensibilidade feminina não se faça sentir, mesmo quando o protagonista é masculino. Mas não deixa muito mais de ser um indicativo de compreensão do espírito humano, a despeito de que gênero protagonize. Logo, esse movimento, essa alternância, acaba nos devolvendo nada de realmente especial, senão declarar algo a respeito do que julgamos ser fenômenos humanos --- independentes do gênero. Quer dizer do gênero das personagens, ou da realizadora. Ou anterior a essa "classificação".

No primeiro, As Virgens Suicidas (1999), quem narra é o grupo de adolescentes obcecados com as irmãs Lisbon. No segundo, Lost in Translation (Encontros e Desencontros, pt-BR, 2003), é o astro americano contratado para vender uísque em uma campanha publicitária japonesa. Mas também é certo que neste segundo, a mundividência transita sutilmente de Bob Harris (Bill Murray) a Charlotte (Scarlett Johansson), uma jovem americana que acompanha o marido na viagem de trabalho ao Japão, e cujo casamento conhece um abalo. Há, portanto, uma alternância. O ponto de vista feminino acentua-se com Marie Antoinette (2006), e reflui consideravelmente com Somewhere (2010), para a seguir ressurgir em predominância no The Bling Ring (2013).

Logo, não parece ser por isso, pela preponderância ou não de um ponto de vista de gênero dos protagonistas, que os filmes de Sofia Coppola são ou deixam de ser importantes. E, assim, soa um tanto gratuito o argumento de que a escolha de The Beguiled, seu filme recém-lançado neste 2017, parte da premissa de emprestar "um olhar feminino" à engenhosa trama dirigida por Don Siegel e esplendidamente interpretada por Geraldine Page, em 1971. Se de fato há um desafio posto aqui, talvez seja menos o de transpor a trama para um "olhar feminino" do que ser capaz de injetar tanta verdade numa personagem como o fez Page na versão de 71. Algo que deve ter tirado o sono de Nicole Kidman.

Vivemos em um tempo que tornou fácil detectar algo mais oportunista que sincero. Nunca foi mais estratégico colar sua produção artística a certo discurso hegemônico de combate, porque vivemos numa época que pouco questiona esse discurso, no fim das contas. E, logo, esse discurso, que se confunde com certas premissas do politicamente correto, dos Estudos Culturais, é hoje uma espécie de consenso entre quem se considera de esquerda. Ou de vanguarda. E como qualquer consenso esforça-se justamente para não ser questionado. Ou para eliminar seus questionadores. Além disso, a perspectiva social (leia-se política) nos filmes de Coppola é um tanto restrita. Rasa. Seu universo resume-se ao universo das celebridades. É o universo que ela conhece desde criança. Não só conhece, como parece um tanto fascinada por ele. Nem sempre no bom sentido, como costuma ser qualquer fascínio. Pois, nesse sentido, até Marie Antoinette é tomada por seu lado celebridade, por sua disposição um tanto frívola ou fashion.

Até esse ponto não há qualquer incongruência. A incoerência vem quando se dá um tratamento inadequado ou pueril para um motivo que se desconhece, como no Marie Antoinette. Esse filme frívolo só pode ser levado a sério, se tomado na forma da farsa: um bando de americanos brincando de príncipes absolutistas europeus do Séc. XVIII, obviamente sem a mínima compreensão (histórica) do que estão tocando. (Ponham-no em paralelo com La nuit de Varenne (Ettore Scola, 1982) e se tem a medida de o quanto o filme de Coppola trata a história como um elefante numa loja de cristais).

Mas o filme infelizmente não parece ser isso. Quer dizer, não é como rematada frivolidade, como farsa, como a Revolução Francesa comentada desde a coluna social e as revistas de fofoca, que o filme quer se propor, ser tomado por. Ele quer, em algum instante, ser levado a sério, inclusive como proposição histórica. Ser mais pretensioso. Nem que pela força de sua aparência --- já que por ela foi premiado com o Óscar de melhor figurino. (E pode haver algo mais pretensioso do que numa série de planos que nos desvelam os calçados da corte, como se estes estivessem numa vitrine da Quinta Avenida gravada em vídeo-clipe, e de repente surgisse um par de All-Stars de cano alto? Isso noutro contexto, até funcionaria, mas aqui não passa de pretensão, rematada bobagem). É preciso intrometer-se na história dos outros quando não se tem uma muito longa. E se quer ter. Parece que foi Wittgenstein quem disse: imensa infelicidade resulta a quem não tem uma tradição, e deseja ter uma. Mas, de algum modo, a imagem do All-Star é reveladora, e faz história. Menos a história do cinema, mais a dos Estados Unidos enquanto império (em decadência).

Porém, o filme seguinte, Somewhere, peça de câmara diante da extravagância sinfônica, operística, a opulência visual , a incongruência histórica e certa hesitação de registro que é o Marie Antoinette, prossegue com esse motivo dos happy few. Coppola, ao que tudo indica, gosta do universo em que nasceu: o das celebridades. Dificilmente ela teve vivências semelhantes às da maioria das pessoas que assiste a seus filmes. E, logo, em Somewhere, ao dimensionar as mágoas e feridas de um galã pós moderno, em Hollywood, sendo expostas pela condição da paternidade, Coppola tece um comentário legítimo, pungente sobre um universo que conhece por dentro. Mas, claro, vai mais além, reflete sobre a condição da paternidade em si --- tema caro a um realizador como Wenders, visualmente uma influência tão poderosa, sobretudo no Lost in Translation mas também em Somewhere. [Ao ponto de se poder cojecturar se seu diretor de fotografia, Lance Acord, é um admirador de Robby Müller].

Mas em Somewhere ela também esboça em Cleo (Elle Fanning) um perfil bastante delicado de uma jovem em plena transição da infância para a adolescência. (E o nome Cleo nos remete a outra especialista em certo patriciado com tédio, conversando bastante e montando hábeis especulações quase a despeito de si nessas conversas: Agnés Varda. O mesmo se dá de forma ainda mais acabada com Eric Rohmer. A diferença é a de que esse patriciado, no caso de Rohmer, é bem mais envernizado, escrupuloso, dado a discutir filosofia, além de nos conduzir a um entretenimento mais sutil).

Para Sofia Coppola, o conhecer por dentro esse patriciado, o universo das celebridades e da fama, é algo que está presente em todos seus filmes. Neles, praticamente não há "gente comum". A não ser como aberrações. Essas aberrações são motivo de as personagens desse universo das celebridades ou ignorá-las em repugnância, ou se deterem para assisti-las, maravilhadas, como a testemunhar, algo exótico, atração de circo. É o caso do garçom que toca debilmente uma canção para pai e filha, ou das dançarinas de pole que fazem seu show a domicílio em Somewhere; do hiperrealismo histérico das próprias irmãs Lisbon, em As Virgens Suicidas; do grupo de freaks, siderado pelas personalidades de Hollywood, que leem as revistas de fofoca, postam fotos glamurosas nas redes sociais, assaltam as mansões do 'beautiful people' para roubar suvenires, artigos de luxo e dinheiro, em The Bling Ring (2013). Eles desejam ardentemente ser celebridades. Não tem outro projeto de vida. Mesmo que nada de especial tenham feito para tanto. Algo que abra as portas da fama: escrever bons roteiros, atuar bem, cantar, dançar, compor, fotografar... E chega a ser divertido o modo como postam suas fotos nas redes sociais fazendo caras e bocas, envergando roupas e adereços finos, posando como personalidades do showbiz. E nisso vai investido um prazer. Tem um valor em si. Não poucos jovens pensam assim hoje em dia. Querem ser celebridades, mas sem lastro. Ou seja, sem nenhum talento particular. Ou sem nada terem feito para isso, em termos de estudo ou trampo.

Algo para se por em analogia é o filme alemão The Edukators (Die fetten Jahre sind vorbei, Hans Weingartner, 2004). A delinquência juvenil é a mesma. Os motivos também, no fundo. Embora pareçam diametralmente opostos, e os garotos alemães, aos olhos de certa esquerda autoritária: "conscientes" e "engajados". Mas a verdade é que tanto um quanto outro filme passam recibo da fragilidade ética dos valores contemporâneos. E da espetacularização da vida. Com a ressalva: o de Coppola parece bem mais perturbador. Isso, a despeito de si, porque, de alguma forma --- de forma um tanto inconsciente --- ele termina por glamurizar a própria ação do grupo. E torná-los, de alguma forma simpáticos. Heróis mesmo.

Os protagonistas dos filmes de Coppola pertencem a uma espécie de patriciado artístico transnacional. Estão cercados de mundanidade e muito dinheiro. Suas prioridades podem parecer fúteis, mas em uma crônica, em roteiros que não os caracterizam assim. Porque visivelmente essa crônica, esses roteiros não se mostram sequer interessados em entrar nesse mérito. Nisso, Coppola é coerente: trata daquilo que conhece. Obviamente, em seus filmes há certa dose de condescendência em relação a quem está fora desse círculo de giz. E talvez seja por lhe dar o devido desconto, que existam críticos no Japão que apreciam Lost in Translation, mesmo com a enxurrada de clichês com que o povo japonês é retratado, e conforma, assim, na trama, uma barreira diante do não-japonês, do estrangeiro em Tóquio, do americano.

Ato contínuo, quando investigada, essa barreira contribui decisivamente para os sucessos narrados. Ou seja, para aproximar Charlotte e Harris. Uma vez que sentindo-se tão isolados e alienados da cultura corrente, em Tóquio --- apesar da simpatia de Charlotte pela cultura tradicional do Japão --- eles encontram, um no outro, algum alívio para esse cenário de crise, de incomunicabilidade, de 'in between' em que não conseguem "se encaixar". Será que seria possível criar instâncias de humor ou demarcar esse distanciamento que os cerca sem lançar mão de clichês e estereótipos, tão caros a Murray?

De outro modo, em Lost in Translation, a gag em torno da qual gira a melhor circunstância do humor, a tradução das instruções durante a gravação do comercial, não é nova, mas segue soberbamente bem conduzida. Por Coppola. Mas também por Murray. É que Murray é o tipo do ator --- a exemplo de Buster Keaton, Bette Davis, Humphrey Bogart, Joan Crawford, Robert Mitchum, Thelma Ritter, Marlon Brando, Joanne Woodward, Walter Matthau, Woody Allen, Warren Oates ou Christopher Walken --- que sempre interpreta a si próprio mais que a uma personagem. Isso está longe de indicar apenas canastrice, como quer o senso comum. Mas isso também conforma a razão pela qual Murray foi posto em protagonismo tanto em Lost in Translation --- em que interpreta um astro americano que não é ninguém mais que ele próprio --- como, doze anos depois, em A Very Murray Christmas (2015), um "ele próprio" que é mais assumido.

Algo do Wenders do Paris, Texas (1984) nesses planos dos dois protagonistas melancólicos, silhuetados próximos das amplas vidraças do quarto de hotel, em Tóquio, com a cidade a seus pés. Aliás, a figura de Charlotte surge bastante decalcada de filmes de Wenders, como quando está junto ao mapa do metrô, ou aguardando na estação ao lado de uma senhora japonesa. Ou com um mangá entreaberto sobre o colo, já sentada dentro do vagão. Seus tempos mortos, tão bem compostos, possuem esse filtro de uma civil aposta no urbano, que aflora tão wenderiana em sua gentileza. E depois câmeras na mão à saída do vagão, na comprida escada rolante, numa alameda sob a chuva, percorrendo um templo budista. Esse descolamento solitário, esse flanar pelo metrô e ruas de Tóquio, faz o espectador enamorar-se da personagem de Johansson em meia-dúzia de planos:

Quando a seguir ela liga para uma amiga nos Estados Unidos, está muito tocada. Pela própria solidão de sua condição de ocidental contrastando com uma cultura tão diversa, mas também pelas circunstâncias de seu casamento. Aqui se transmite uma das condições mais características de nosso tempo: a falta de jeito para dirigir-se a um interlocutor num momento de crise, de vulnerabilidade. As pessoas não atentam mais para certos tons de voz. Ou simplesmente disfarçam, fingem que não é com elas, não tem tempo para a crise das outras. E, evidente, há certo cinismo pragmático nesse "não é comigo". Ter tido tempo para a respectiva crise do outro foi o que permitiu o encontro entre Michelle e Bob Harris. Pois esse ator canastrão, do alto de sua fama e reconhecimento, não se encontrava menos sozinho em Tóquio:

A expressão de caras e bocas de Harris (Murray) é algo como se um espetáculo bizarro e permanente se estivesse desenrolando diante de si. Talvez os japoneses tenham alguma razão de se sentir ofendidos. Mas, por outro, a doçura inefável e a melancolia de Charlotte (Johansson), flanando pelas alamedas de Tóquio, compensam amplamente a coisa. -Do you like massage? -I don't think I.. Uh.. I like massage anymore. -My stockings, 'leap' them? -You want me to 'leap' your stockings? -Yeah, 'leap' them - diz a senhora japonesa, enrugando o tecido das meias sobre as pernas com a ponta dos dedos. -Oh you want me to rip them.

Ao seu turno, o problema com Murray parece guardar débito com o excesso de expressividade. Ele move uma sobrancelha e o mundo vem abaixo. Mesmo na pele desse ator entediado, em Tóquio, bastante deprimido, não consegue deixar de se mostrar mordaz e espirituoso. E, acima de tudo, comunicativo. O tempo inteiro. Isso eclipsa todo o elenco de apoio. E até ataca um pouco as premissas do filme: a questão da tradução, da incomunicabilidade. De algo na comunicação ficar sempre preso em sua própria transmissão. Murray é carismático demais. Difícil pensar que alguém se lembre, por exemplo, da fisionomia da garota de programa --- já não tão garota assim --- que vai ao seu quarto insinuar-se, encaminhada pela produção do comercial. Ou de Kelly (Anna Farris), a expansiva amiga de John (Giovanni Ribisi), o marido fotógrafo de Charlotte. E, assim, o que ele pode propor como solução, expressividade, acaba transformando-se em problema. Desse problema não padece Johansson. Provavelmente por deixar-se dirigir. Ser capaz de incorporar mais personagens, que não ela própria.

Já quanto ao humor que se extrai das instruções traduzidas no set de gravação do comercial, o chiste tem muitos antecedentes. Basta lembrar de uma história em quadrinhos --- da Disney, aliás --- que desenvolve-se toda em cima dessa circunstância. Ou seja, a de a tradução de frases longas do japonês soarem monossilábicas em línguas ocidentais, e vice-versa. Alguns japoneses podem não gostar, porque quem é o "outro" nos filmes irá propender a ser ridicularizado. E eles são o "outro" nesse filme. E sem essa degradação do outro --- ou sem uma mínima autoderrisão, em que o eu desloca-se para o papel do "outro" aos olhos de alguém --- não se faz humor, tal qual nós, humanos, conhecemos. Às vezes, convenhamos, o politicamente correto desconhece isso.

Então, resta saber se o outro está minimamente disposto a conviver com essa circunstância, em esportividade. Ou se essa circunstância lhe é tão desfavorável que se torna insuportável. Eis um tema que o politicamente correto ainda não ajustou consigo mesmo, ainda não calibrou, porque fixou nichos estanques para quem pode ser abusado. (Ou seja, alguém que é abusado e faz parte de uma minoria parece ter mais direitos a ser humano e aceito do que alguém que é abusado e não pertence a nenhuma minoria mais ou menos canônica). Mas então, temos às Virgens Suicidas (1999).

Foi uma senhora estreia. E, de cara, ter de dirigir James Woods e Kathleen Turner. Assim como praticamente apresentar Kirsten Dunst. Esta é mais uma das beldades nórdicas consagradas por Hollywood. (E há uma longa linhagem delas. Que vem de Garbo, passa por Anita Ekberg --- além de algumas das "loiras de Hitchcock", seguidas de Lena Olin e Björk --- e deságua justamente em Scarlett Johansson, Alicia Vikander, Vicky Krieps, Brie Larson e Dunst. Há, aliás, a cena em que Charlotte e Harris veem TV no quarto de hotel em Tóquio. Está passando justamente a prismática sequência da Fontana de Trevi em La dolce vita (1960). Uma cena em que aparece Anita Ekberg. Mas também um filme de Fellini que deve ser caro a Coppola. E porque trata justamente desse mundo das celebridades, que é seu universo por excelência. A encarnação mais expressa desse mundo é a estrela de cinema loira, platinum blonde, que nem Scarlett Johansson ou Kirsten Dunst.

O platinismo blonde das irmãs Lisbon, aliás, é dos fetiches mais apreciados pela garotada que as trata como mini-celebridades num subúrbio da decadente Detroit dos anos 1970. Uma metrópole que tende à cidade fantasma. Cidade fantasmática. Cidade em que não há muito com que se ocupar, o que admirar, o que assistir, a quem amar. Especialmente naqueles tempos iminentemente pré-digitais. Pode-se imaginar que hoje, a prisão domiciliar das garotas seria, no mínimo, atenuada e descontraída pela presença da web. E, logo, parece algo despropositado, do tempo do bumba, definitivamente de outro século, que aqueles adolescentes fiquem trocando temas musicais pelo...telefone. Mas também pode-se imaginar que elas não obcecariam tanto os rapazes de hoje, a ponto de as venerarem como semi-deusas. Pois a oferta de pornografia na web é colossal. O certo é que seguindo a lógica "psicanalítica" de humor do filme, é justamente por isso, por falta de contato, que elas morrem tão aborrecidas: ausência de afeto, de sexo.

Neste ponto, o roteiro --- adaptado do livro de Jeffrey Eugenides --- soa um tanto esquemático. Será que pais têm de ser católicos fervorosos e estritos para que filhos se suicidem? Não parece ser o caso. Logo, quando há esse exagerado ataque ao catolicismo --- caricato mesmo --- deve-se também ficar curioso, e ao ler só um pouco mais a respeito, descobrir que Eugenides, em determinado momento da vida, viajou para Calcutá e tentou engajar-se nas obras assistenciais de Madre Teresa. Ao que tudo indica, saiu frustrado dessa experiência. Ou seja, saiu da Índia descrente no catolicismo e decepcionado com Madre Teresa. (Não se sabe se Madre Teresa decepcionou-se ou não com ele). Afinal, é mais fácil imaginar cuidar dos pobres do que efetivamente cuidar deles. Também é mais acessível idealizar Madre Teresa do que tê-la em carne e osso diante de si. E, então, desiludido com a sua (e as de Madre Teresa) capacidade de compaixão, Eugenides "sartou" fora da Ìndia. Uhm, claro, tanto fel contra o universo católico, de modo gratuito, só pode provir de alguém profundamente afetado pelo catolicismo. Mais ou menos como os críticos acerbos da homossexualidade, parecem ter uma declarada atração pelo ponto de vista sexual que atacam com tamanha veemência.

Mas o nosso tempo adora uma caricatura. E o nosso tempo também não tolera a outridade. E, assim, diante de qualquer sinal de religiosidade, ainda que brando e transigente, deve-se pôr a questão entre parênteses. Esse parêntese se chama caricatura ou clichê. Ou imediatamente esse sinal deve ser submetido à mesma fogueira de Auto-da-fé que queimou em sentido inverso, nos séculos passados. Ou seja, tanto quanto os japoneses em Lost in Translation, quem é "religioso" no Ocidente, hoje, é posto na condição de "outro", e ridicularizado à exaustão, porque o ser humano ainda não inventou uma forma de humor que, passando ao largo do outro, não o estigmatize. De alguma maneira. Provavelmente, se consultadas as estatísticas, talvez a maioria dos casos de suicídio até aconteça entre filhos de pais ateus ou de religiosidade pouco cultivada. Mas quem quer mesmo saber disso?

A caricatura de Eugenides, destramente posta num estilo hiper-realista, é tão virulenta que chega a se tornar completamente irreal. E nesses casos instaura-se uma questão: leva-se isso a sério, ou tudo isso não passa de uma grande pilhéria, ao modo do Monty Python? Uma pilhéria infinita com notas de rodapé, ao modo de um Foster Wallace? Uma coisa é certa: é mais da ordem da comédia ou da deslavada farsa que de qualquer outra esfera. E, logo, como querem os teóricos ainda pós modernos, tende a chamar mais atenção para o modo de contação da história que para sua verossimilhança ou seu desfecho (sua "moral da história", como quer o Benjamin de "O Narrador").

Coppola vem de uma família católica. (Ela, sem nenhuma culpa, põe uma deliciosa bunda num plano de abertura). Não admira que se tenha identificado tanto com o livro de Eugenides. Ou seja, há um momento em que o resquício desses escrúpulos religiosos --- ainda que nada ortodoxo --- precisa definitivamente ser deixado de lado, num ato de fé público, quando se abraça uma carreira. Ou almeja algum tipo de reconhecimento vindo na forma de prestígio e uma compensação financeira. Pois, aqui, há que se lembrar de um fato simples: Lost in Translation, uma produção de 4 milhões de dólares, faturou a bagatela de 120 milhões. Ou seja, é um lucro absurdo: simplesmente trinta vezes o valor investido. Algo que bate de frente com o discurso clássico do catolicismo, que condena a usura.

Mas é claro que, depois desse êxito, todo mundo queria fazer filmes com Sofia Coppola. E ela ganhou a respeitabilidade imediata do establishment hollywoodiano. Reconhecimento que veio na forma de um Óscar para melhor roteiro adaptado. Por um triz ela não foi a primeira mulher a receber melhor direção na história da premiação. De fato, ela se tinha "empoderado", como se diz, com esse "m" que vem em linha direta do inglês, feito um mandamento. E o cachê de Murray, claro, foi à estratosfera. Em termos artísticos, tanto sucesso e dinheiro apenas no segundo longa, não costumam ser bons guias. E, no caso de Coppola, de fato não parecem ter sido.

Depois de três filmes apenas soporíferos --- à exceção é Somewhere --- aguarda-se algo mais de The Beguiled. Algo à altura dos tensos, brilhantes dois esforços do início. (Ou de uma busca de maturidade e escape a uma vida fútil, justo o tema de Somewhere, um filme digno). E não é improvável que venha. Porque a despeito de cifras, sucesso, fracasso, irregularidade na trajetória, visão de patriciado, pouca profundidade e coerência histórica, desejo deliberado de superficialidade, e decalque oportunista a partir de bandeiras comportamentais, existe algo inquestionável: Sofia Coppola está entre os mais talentosos realizadores de sua geração.

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