Mais Perspectivas no Traço que na Vida
Conversa #19 La tortue rouge (A Tartaruga Vermelha (pt-BR), Michaël Dudok de Wit, França/ Bélgica/Japão, 2016)
Ciclo de ondas concêntricas ao redor da solidão, esta animação é toda esboçada em torno de uma figura, de uma circunstância: flutuar. O horizonte, as perspectivas, a transparência parecem ilimitadas. (Mas também não se pode fugir deles). Os limiares são fluidos. E há momentos reais que surgem como sonho. E vice-versa.
O traço do desenho agrega elementos do mangá, de Hergé e de Seurat. Dos três, sim, mas aproximando-se mais do mangá e cedendo espaço a vastas áreas vazias, contínuas --- praia, céu, mar, montanha, selva, várzea --- em que o ser humano tende mais ao ponto que ao close E, assim, uma pequena ilha tropical, com recifes de corais em volta, daquelas que se vê por inteiro com algumas braçadas na direção do mar aberto, faz-se ao espectador o reverso de Lilliput. Redimensiona o homem na natureza. A tal ponto que não são muitos os planos em que se pode divisar de perto a fisionomia das personagens. E então achar o traço fisionômico próximo daquele do criador do Tin Tin. Quer dizer, daquele tipo mais genérico, de figurante em Tin Tin.
Durante uma tempestade, um náufrago consegue chegar a uma ilha deserta. Aparentemente só ele sobrevive. Umas poucas de vezes, tenta escapar numa jangada rústica. Só que a jangada é sempre destroçada pelo impacto de um grande animal. Tende-se a supor: "são tubarões". Mas o homem descobre numa das últimas tentativas: é uma enorme tartaruga vermelha. Ao divisá-la na praia, o homem se precipita sobre ela, emborca-a, lhe atinge com pauladas. Consegue matá-la. Depois arrepende-se.
Com o passar dos dias, dentro do casco partido da tartaruga forma-se uma mulher adormecida. A mulher desperta. Passa a viver com o homem. A acompanhá-lo. Eles têm um filho. O menino cresce conhecendo todos os recantos e segredos da ilha. Sabe coletar, caçar, pescar, ler pistas, abrigar-se. Em particular, torna-se exímio nadador e desenvolve cumplicidade com as grandes tartarugas vermelhas.
Um dia, quando o menino é já rapaz, um tsunâmi arrasa a ilha. O jovem consegue localizar seus pais e ajuda a salvá-los. Mas boa parte da ilha é destroçada, inclusive a floresta de juncos, essencial para a construção das jangadas. Algum tempo depois, o menino decide tentar a sorte no mar. Despede-se dos pais, e se faz ao largo na companhia de duas tartarugas e uma boia rústica. Jamais retornará.
O homem envelhece ao lado da companheira. Sua barba e cabelos agora estão brancos; seus movimentos, lentos. Eles abraçam-se, dançam pausado sobre a areia da praia. Certa noite, contemplando o céu, ele morre pacificamente. Sua companheira ao acariciar-lhe a mão reganha a forma de uma tartaruga vermelha e volta ao mar.
Que não haja piratas, intrusos, o resgate do náufrago, sequer navios passando ao largo; que o náufrago esteja condenado a viver o resto da vida na ilha, a qual chegou jovem; parece uma perversão francesa e existencialista com o beneplácito do zen budismo nipônico. E, no entanto, essa condição deve ter ocorrido a muitos náufragos no passado.
Os indícios dados --- por meio dos utensílios, da vestimenta inicial do protagonista --- são insuficientes para precisar época. Num delírio, ele vê um quarteto de cordas soando na praia. Depois a flutuar sobre a água represada pelos recifes. E os músicos estão vestidos com roupas do Séc. XVIII. (Mas podia ser um grupo usando instrumentos de época e vestindo-se a caráter). Utensílios são raros. O tonel de madeira, de logo quando o náufrago chega à ilha, ou a garrafa arrolhada, que o garotinho encontra, pouco datam. Tampouco são acenos de esperança.
Há um detalhe que passa desapercebido à maioria: não são necessárias legendas, simplesmente porque não há falas. (Quando muito interjeições, gritos, alertas.)
Essa história atemporal, lenta, é mais cheia de cotidiano e tédios que de peripécia. Desloca seu eixo da tentativa de sair da ilha para os pequenos prazeres e grandes desafios de viver nela: ter uma companheira, um filho, dormir ao relento sob estrelas, suportar a solidão, o tédio, proteger-se dos selvagens. Desenvolver estratégias de sobrevivência. Inclusive psíquicas. Não se trata, aqui, do sonho de consumo de um leitor de Vida Simples. A vida é dura. Há mais perspectivas no traço que nela. Mas, no fim das contas, qual é o papel da fantasia em tudo isso, se a vida é insuportável quando há apenas realidade, quando há excessos de realidade? E quem pode distinguir entre sonho e realidade na cabeça de um homem que dorme sobre a areia da praia de uma ilha deserta?
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