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Se o Sal Perde o Sabor

Conversa #23

O Ornitólogo (João Pedro Rodrigues, Portugal, 2016)

Mal sabe que enquanto observa marrecos, gaviões, abutres, corujas, tordos, cegonhas, ele é mais observado que observa. Pois a natureza devolve a potência de um olhar que não quer dissecá-la com bisturi, mas passeá-la em contemplação e desejo de fusão ou concórdia. A leveza de um percorrer, de um perfazer muitos quilômetros, lançando mão de vários pontos de vista. Mas de um perfazer sem alterar, e que nunca se dá por perfeito. Assim há dois trunfos em O Ornitólogo: 1. a fusão dos sentimentos do protagonista com a natureza (e que natureza!); e 2. a fusão desses mesmos sentimentos com o rico universo do misticismo cristão, onde há um vigoroso e tremendo espaço a ser resgatado e incorporado à sensibilidade homossexual.

Só o desconhecimento desse rico acervo pode desculpar a negligência de não se lançar mão dele com mais frequência e consistência. E para a construção de figuras, tropos, conceitos de expressão coletiva tão elevados como em alguns momentos percebe-se neste filme. É claro que nem tudo são flores. E se a primeira fusão (Natureza) foi amplamente contemplada no som, na imagem; não se pode dizer o mesmo da segunda (Cristandade, Catolicismo), em momentos pontuais.

No caso da primeira, o acerto nos chega pela escolha da locação: o vale do Douro, próximo da Albufeira (ou Represa, em nossa versão do português) de Miranda, rente à fronteira com a Galícia e León. É local de grande expressividade. E não só natural, uma vez que há as peculiaridades linguísticas --- um dialeto que afina com o asturo-leonês --- e uma rica diversidade da cultura popular que lembra os maracatus rurais de Pernambuco e os côcos do Ceará. De algum modo. De um modo bom. Lá se fala uma língua própria: o Mirandês. Todos esses signos de outridade são convidados para demarcar uma sensibilidade --- e mesmo uma ética sexual, se quiserem --- diversa da norma.

Aqueles cânions que vemos, de uma beleza ímpar na Europa, a exemplo dos de Xingó --- na fronteira de Sergipe com Alagoas, no Rio São Francisco --- não são totalmente naturais, mas resultantes de um projeto --- dos anos 1960 --- de represamento do Rio Douro para geração de energia. A solidão e a introspecção do protagonista, um ornitólogo, a observar pássaros com um binóculo, ditar observações a um pequeno gravador e tomar notas, tem tudo a ver com vida monástica, com exercício espiritual, com ascese, busca. E é bom que essas zonas de sensibilidade sejam também povoadas e suplementadas pela sensibilidade gay, já que o mandamento maior do cristianismo não parece, em nada, incompatível com qualquer forma de amor: "amai-vos uns aos outros".

Esse movimento ascético, vivido numa prisão ao ar livre, numa bolha natural, que é uma região fantástica --- entanto, não deixe também de representar um aprisionamento (físico, espiritual) --- é rompido em alguns momentos pontuais: 1. por um acidente de caiaque, que, ao descer involuntariamente um trecho de corredeiras, emborca, e quase tira a vida do protagonista, Fernando (Paul Hamy); 2. quando este é sucessivamente salvo, medicado, depois aprisionado por duas turistas chinesas em peregrinação a Compostela, e que falam de eventos fantásticos; 3) no momento em que Fernando topa com esses eventos fantásticos, na forma de uma carnavalização rural do ciclo das colheitas e da caça, encenada por lavradores e pastores locais; 4) ao encontrar e fazer amor com Jesus, um pastor de cabras, que, depois de um combate renhido, Fernando acaba por matar; 5) ao, em seguida, topar com bichos exóticos e misteriosos no meio da floresta (um jaguar, uma girafa); 6) e, logo ao depara-se com estranhas amazonas armadas até os dentes; e, por fim, 7) ao reencontrar Jesus sob o nome de Tomé, seu duplo, seu irmão gêmeo, indicando mais que uma conciliação, uma mutação e compromisso ao final do filme em que, transformado em Santo Antônio (que era português, natural de Lisboa), os dois, Fernando (agora, António) e Jesus (agora Tomé) percorrem uma auto-estrada nas imediações da cidade de Pádua (Padova), no Vêneto, Norte da Itália.

Aqui, não se pode desprezar também as interferências do smartphone: as mensagens trocadas entre Fernando e seu namorado, Sérgio. Mas essas, pela circunstância de serem mensagens consensuais, consentidas de parte a parte; parecem mais frutos do cuidado, que é peculiar a um casal, que qualquer outra coisa. (Ou seja, que uma censura explícita à monogamia, p. ex).

Modernamente a palavra cuidado tem um belo sentido. Nem sempre foi assim. No começo da língua, quando o galego e o português ainda eram indistintos, cuidar teve outros sentidos. Entre eles o do ciúme, pois, muito obviamente, quem se desvela em atenção, zelo, se dedica ao outro, espera retribuição. (Nem que inconsciente). E todo cuidado, portanto, resguarda também certa dose de controle, de castração. De zelo ou ciúme. (Isso segue bem ilustrado no modo como as chinesas planejam tratar Fernando, em última instância: castrando-o. Transformando-o em escravo-eunuco delas. Mas aqui transmite-se também um quê de misoginia gay que se repete, por sinal, na passagem das Amazonas: o feminino visto com um misto de admiração, desconfiança, rivalidade e ameaça --- eis um motivo recorrente em alguns filmes gays).

Contudo, o caso de Sérgio e suas mensagens é diverso. E parece indicar: a gente só se dá a cuidar --- em qualquer modalidade de casal --- a quem escolhemos. Portanto, não parece haver qualquer indício de relação mórbida na atenção e na constância com que Sérgio envia mensagens a Fernando, até porque dele também as recebe. E, aliás, os dois trocam palavras carinhosas, em mais de um instante.

A cena da transa entre Fernando e Jesus é, até certo ponto, casta e bem comportada quando posta em quadro. Esse encontro, aliás, comporta um dado chave: Jesus, aqui, é mudo, não pode pregar. Exprime-se por grunhidos, interjeições, como um animal, como aquele que ainda não saiu da natureza. Quem tem a fala, o dom do verbo, é o outro, é seu duplo, é justamente Tomé --- classicamente ligado, desde os Evangelhos, àquele que duvida, que é cético, que exige provas para crer. E, portanto, conforma uma espécie de duplo demoníaco de Jesus.

Na construção visual da transa entre Fernando e Jesus, o modelo nítido são os quadros religiosos exemplares, hagiográficos, da pintura medieval e da Renascença. Nada aqui lembra o açodamento e a frequência com que se transa num filme como o thriller L'Inconnu du Lac (Alain Guiraudie, 2013), em que o universo gay, em termos corporais, é posto de modo muito mais desenvolto e direto na imagem, com um erotismo gráfico explícito. Quer dizer direto para a vista. Para o olhar imediato. Ou só para aqueles que pensam que ousadia limita-se a mostrar um corpo com outro corpo, tendo prazer. (Isso que é mostrado no cinema, desque há cinema). Porém sobre os corpos respingam figuras: metáforas, símiles, paradoxos, sinestesias, etc. E a grande figura que respinga sobre a relação carnal entre Fernando e Jesus é a da símile. A da analogia. Especialmente quando se percebe, aos poucos, que Fernando nada mais é que uma reincorporação de Santo Antônio de Pádua.

A lamentar apenas que certas sequências não sejam tão coerentes quanto a da transa entre Fernando e Jesus e outras. As que destoam passam 1. pelo final do encontro com as chinesas, a partir do ponto em que Fernando consegue desatar-se de um árvore; 2. a do encontro com as amazonas, e, 3. sobretudo a da presença de animais selvagens exóticos. É que estas sequências são dissonantes em relação a linha mestra do filme, que vai pelos movimentos: a. contemplação (observação de aves na ribeira do Douro; b. antagonismo (em relação às chinesas); c. combate e morte do amante misterioso (Jesus), d. medo e descoberta de forças naturais (os brincantes, que também podem ser vistos como monstros, tótens ou 'dáimons' ('demônios', 'espíritos', na acepção grega da palavra)), d. constatação da existência dos animais fantásticos (ao modo das bestas e do Leviatã bíblicos); e. pregação aos peixes (numa alusão cada vez mais explícita a Santo Antônio); f. encontro com as amazonas; g. reunião final com Tomé no Minho e depois em Pádua, e h. a transformação de Fernando em Santo Antônio de Pádua.

É claro que diante da beleza dos planos que nos dimensionam a contemplação de Fernando/Santo Antônio, os que tratam da aparição dos animais exóticos ou das amazonas parecem pueris e trashes. (Não são compatíveis com os primeiros nem em forma, nem em discurso "no" regime de imagens e sons propostos de início pelo filme como seus veículos de expressividade).

Mesmo com essas irregularidades, O Ornitólogo é dos mais engenhosos filmes a tratar do universo gay em língua portuguesa até aqui. O que nos faz desejar mais filmes assim, que transcendam a mera vontade de exibir a um público maior a existência desse universo. Essa existência e alguns dos problemas mais óbvios que ela instaura já são conhecidos. Não chocam mais. Pelo menos à considerável fração mais bem educada da população, atenta e disposta a assistir um filme tratando desses motivos, e questionando suas premissas, estratégias e dispositivos. Então, a tarefa aqui: já está no tempo de passar para um segundo momento: tratar esses temas por meio de associações tão inesperadas quanto essa analogia traçada entre um ornitólogo gay do séc. XX e um santo católico do séc. XII.

É o que faz João Pedro Rodrigues. Inclusive ao re-encenar a célebre pregação do franciscano aos peixes, utilizando um trecho de um sermão, não do próprio, mas de outro Antônio: Vieira. Ambos, entre os maiores pregadores católicos da história, e o primeiro Antônio, doutor da Igreja. (É chamado, entre os portugueses, Santo António de Lisboa --- para reforçar seu lugar de nascimento e educação, quando em qualquer outra parte é conhecido como Santo Antônio de Pádua. (Portugal e Pádua são os dois locais que, por sinal, aparecem em O Ornitólogo). Este Santo Antônio é o mesmo que comemoramos na abertura do ciclo junino. O santo casamenteiro, porque há histórias de que era um conciliador de casais, em sua hagiografia).

A beleza dos planos iniciais, certa coerência da trama --- até ser atacada por regimes de imagem e sons incompatíveis com o tom geral dos dispositivos tomados na primeira parte --- sustentam este filme contra alguns de seus não pequenos deslizes. O final, com Tomé em sua roupa de brincante, pulando à beira de uma auto-estrada, mãos dadas a Santo Antônio, à entrada de Pádua (Padova), contrasta com a sobriedade e o ascetismo da solitária jornada do ornitólogo nos bosques do Minho. Tivesse tudo se resolvido nessa primeira locação, e talvez o filme também houvesse guardado mais unidade, e o tom sublime do início. Mas esse final à happy-end hollywoodiano quase entrega a coisa toda. Ou o leva para uma Disneylândia do prazer e da vitória, que é a marca, algo publicitária, de nosso tempo, ao referendar a vitória de algo.

De qualquer forma, é uma produção que indica novos rumos a um nicho que parecia produzir filmes sem muitas ideias. Apenas a partir da defesa incondicional de uma causa justa. Ou da inerente outridade da condição gay. Ocorre que para defender uma causa, mesmo justa, não basta estar com a razão, ou dotar-se de um olhar incomum. É preciso também fundamentar essa defesa: apresentá-la com uma história coerente, atraente, e uma ideia engenhosa. Quando se dá, então, uma apropriação de motivos históricos e tradicionais de um modo tão perspicaz quanto neste filme --- deslocando-os mas aludindo-os --- é algo a merecer todo o aplauso. Ainda que o resultado, ao final, pudesse ter surtido mais sagaz.

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