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Conversa #21
Baby Driver (Edgar Wright, Estados Unidos, 2017)
Baby dispõe algumas das mais mirabolantes perseguições sobre quatro rodas do cinema. Com isso deve ser um dos últimos filmes a glorificar o carro. O automóvel. Seu ronco de cisne. Pelo menos o automóvel tal qual rodou com humanos por aproximadamente cem anos e constituiu uma verdadeira praga para o planeta.
Para os americanos, não mais que a sequência lógica do cavalo. O caubói pulou da sela para o assento do motorista. Horse-power, não por acaso, é como se mede a potência dos carros. (E a potência do carro compensa amplamente a falta de fogosidade do proprietário em ambientes mais íntimos. Daí ser justamente o carro a primeira obsessão do adolescente "macho", ainda em desorientação.)
Foi uma troca em que se saiu perdendo, essa do cavalo pelo carro. O mal ao planeta quase não tem retorno, como já expresso. Mas a coisa não se limita ao fator ambiental, houve também um descenso estético, porque como ser de beleza, o cavalo dá de dez a zero. Não à toa, o cavalo rampante é o símbolo posto na dianteira do carro dos carros.
Por outro lado, o carro restringiu um tanto a capacidade visual do ser humano. É mais ou menos óbvio que um pedestre, um ciclista, alguém a cavalo é capaz de passar por espaços impraticáveis a um motorista. Mas também do alto de um ônibus, de um trem, na vigia de um avião, e mesmo no convés de um navio, há mais possibilidades para a visão, e se fica menos refém de uma máquina, que não sendo tão alta e seguindo tão veloz, praticamente retira a possibilidade de fruição da paisagem. (Aqui, a exceção ainda é a estrada, especialmente quando não se segue guiando).
Recentemente tivemos Drive (Nicolas Winding Refn, 2011) propondo também uma dimensão mítica, de super herói, para a personagem vivida por Ryan Gosling, igualmente diante de um volante. Mas talvez ali ainda houvesse mais complexidade. Mais ambiguidade que em Baby Driver.
O diversionismo de Baby Driver é quase chocante. A necessidade da sociedade pós-industrial branca de construir um herói chega a esse tipo de aberração. Isso já tinha acontecido antes, com o Boyhood (Richard Linklater, 2014). Agora, a coisa fica apenas mais aguda. E por quê?
Porque se apropria de linguagens como o vídeo-clipe, o musical, os quadrinhos, alguma violência gráfica emprestada de filmes de ação, dos thrillers, das séries da TV e sobretudo de códigos e poderes ligados a super heróis. Bata tudo isso no liquidificador junto com algumas citações impactantes e temos a fórmula. As citações, no entanto, começam a ficar um pouco puídas, pueris no instante em que a pizzaria se chama Goodfellas. Convenhamos.
E tudo para glorificar um imbecil que passa o dia gravando e sampleando sons antes de vender seu talento a um sanguinário gângster em troca de maços de dinheiro que ele depõe sob os tacos da sala de estar.
Para dar uma maquiada no caráter reacionário desse herói, forjado à medida dos anos Trump, fazem-no de coitadinho: um órfão em circunstâncias trágicas: perdeu os pais justo num acidente de carro, ainda na infância. Mas também o fazem cuidar de um velho negro paralítico, surdo-mudo e meio apatetado, que surgiu como seu pai adotivo --- não se sabe bem como, ainda mais em Atlanta --- e passa o dia todo zapeando diante da TV, comendo snacks, sandubas e pizzas. E cujo conselho mais "profundo" ao filho adotivo é algo como: "não seria importante levar alegria às pessoas"? Ao que Baby traduz "alegria" como "pizza".
Ou seja, vivemos numa época em que Alegria, a palavra que Bach usou em certo coro para designar o que Jesus significa para a humanidade; ou com a qual Beethoven nomeou um movimento de sua 9ª Sinfonia --- que é hoje o Hino da Europa --- pode ser intercambiada, "ressignificada" --- para lançar mão do termo da moda --- para designar a pizza nossa de cada semana. Nada mau. E alguns acham profundidade nesse deliberado mar de platitudes com ilhas de futilidade. Vale tudo, baby, desque seja raso. E o raso ameace ter a eloquência e a fundura da Fossa das Marianas.
Mas sobretudo vale cortejar (e conquistar) a garçonete mais bela e sensual da face da terra. E aí é covardia. Quem não sentiria inveja em cortejar uma criatura assim, aos vinte anos?
A sociedade americana, carente de heróis, está carente também de ideias. Da capacidade de inventá-los. Figurá-los. Imaginá-los. Propô-los em roteiro. As duas coisas não podem ser vendidas separadamente. Para o azar deles.
Baby Driver, de resto, é algo mais parecido com Boyhood do que se suspeita. O grande motor por trás de ambos os filmes é nostalgia. Uma nostalgia deslavada pelos anos recentes: seus objetos, fetiches, formas, pequenos signos de moda, de mutação. A revolução digital em seu nascedouro. E uma quantidade ainda não tão grande de imigrantes ao redor. É sobretudo esta última circunstância que se esconde por trás da nostalgia dirigida ao design dos celulares em 2003. Ou seja, do passado recente tal qual retratado em Boyhood.
O que mais se pode dizer de um filme em que, no atacado, mesmo os planos/contra-planos são proibidos de durar mais de três segundos? E em nome de seguir no ritmo vídeo-clipe de edição do restante da montagem?
A cena de idílio que envolve a audição de música numa sala de máquinas seca-roupas, em uma lavanderia, é o que mais se parece com uma tentativa de despedida do "mundo tal qual o armamos para nos dar bem". (Isto deve ser lido como a interjeição de um Whasp, e não a resenha de um loser). "Nos dar bem", e "naturalmente nos apartar desses bastardos dos países em desenvolvimento, que aqui chegam como vagalhões a tomar nossos empregos, interferir em nosso bem-estar e, imaginem, namorar nossas esposas".
É bastante emblemático que a rotatividade das secadoras seja posta em sincronia com o giro de um bolachão de 33 rotações nas metáforas de imagem e som. E que, assim, equipare-se a música à secagem de roupas. Nada mais revelador num filme do tipo. Não haveria nenhuma sacanagem nisso, se algo vazasse para fora da vida nessa fábula refrigerada. Mas essa fábula refrigerada não faz muita questão de vida.
Quem salva o filme? Os esgares de John Hamm? As caras, bocas e gírias de Jamie Foxx? A canastrice habitual de Kevin Spacey? Não e não. Em meio a tanto naufrágio, talvez escape algo da espontânea beleza sem fazer força de Lily James. (Aliás, que (bom) fascínio Hollywood nutre por atrizes inglesas desde o cinema mudo). De resto, neste inverno, sabe-se quem pode levar tudo mais, e para onde.
Ainda assim, o fato de que provavelmente esta será uma das produções mais aduladas na próxima noite de gala da Academia, em fevereiro de 2018, passa recibo do reacionarismo sufocante da época em que vivemos. Nos Estados Unidos. Na Venezuela. Na Coreia do Norte. No Brasil. Onde quer que se esteja.
Só nos resta tomar o smartphone, e encomendar uma pizza à Goodfellas.
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