De acertar o que não vê
...
Conversa #25
Norman: The Moderate Rise and Tragic Fall of a New York Fixer (Joseph Cedar, Israel/ Estados Unidos, 2016)
Esta comédia atesta a relação íntima entre uma cidade e uma ideia. A cidade é Nova York; a ideia, o judaísmo. (Entre os pioneiros judeus dessa grande cidade estão os comerciantes expulsos quando da reconquista portuguesa do Recife, no séc. XVII). Nova York é muita coisa ao mesmo tempo. Mas sua ideia é essencialmente a ideia judaica da acumulação de capital. Ou, sem aspas, da usura. Ou seja, de faturar muito a partir de uma aposta de risco: agiotagem, jogo de azar, pôr as fichas em algo já em curso, no número certo, a ser cantado pelo crupiê. De fazer dinheiro gerar dinheiro sem que entre na equação a produtividade, um suor aparentemente desnecessário. Ou pelo menos uma produtividade maior que a lábia e a exasperação do investidor, em determinadas circunstâncias. Algo que tende ao jogo e que tem tanto a ver com bolsas, vidas, valores. Com um lance de dados que não abole o acaso. (Mesmo que, com grande frequência, os dados estejam viciados, e o acaso não tão fortuito assim).
Este ano vários filmes nutrem-se dessa forte relação: Nova York/judaísmo. Tratando de um motivo completamente diverso, temos Menache (Joshua Z Weinstein, 2017), em que uma viúva luta para manter a guarda de seu filho. O ambiente é a comunidade judia ultra-ortodoxa do Brooklyn. Algo não muito distante do meio de onde deve ter se criado o protagonista deste Norman.
Numa atuação que, com justiça, não deve passar desapercebida ao Óscar de 2018, Richard Gere é Norman Oppenheimer, um velhinho judeu que ganha a vida como lobista. Ele se autodenomina consultor e estrategista. Sua estratégia consiste em apresentar pessoas a pessoas. O problema é que nem sempre essas pessoas querem ser apresentadas umas às outras. Ou pior, quase sempre não querem ser assessoradas ou apresentadas por ele, que tem a reputação de haver chegado à velhice sem um correspondente patrimônio. Norman é um rematado 'loser'.
Em suas investidas mais que investimentos, Norman acaba topando com Misha Eshel (Lior Ashkenazi), um carismático político e alto funcionário do governo israelense. Por mero acaso, compra-lhe um par de mocassins numa sapataria de luxo. Esher fica-lhe bastante grato pelo gesto, pois havia adorado o sapato e, ao mesmo tempo, o preço feria sua proverbial sovinice judaica.
Algum tempo depois, Norman e Esher se reencontram em Nova York. Só que Esher é agora o todo poderoso primeiro-ministro de Israel. Esher reconhece Norman e o trata calorosamente, em uma ampla recepção. Norman tenta então capitalizar em cima dessa suposta "intimidade" com o primeiro-ministro. Disso resultam um escândalo de Estado e outras peripécias mais.
Não há como não se sentir solidário a Norman --- um senhor de idade, mal vestido e deslocado --- quando este é ameaçado de receber um pé na bunda do promotor de um jantar, caso o convidado designado por ele não comparecesse. Ora, o convidado era justamente Esher em seus tempos de alto funcionário. E obviamente não comparece. Norman é posto no olho da rua, numa noite gélida. (Há algo de Scrooge na situação. Mas Nova York deve contar com não poucos Scrooges. E a vantagem, aqui, é que sempre podemos ser simpáticos às vítimas desses pão-duros). Norman segue então ao átrio de uma sinagoga, onde costuma a ouvir os cânticos enquanto degusta seus biscoitos água e sal com pasta de amendoim. Nisso ele também discute temas nada transcendentais com o Rabino Blumenthal (Steve Buscemi).
Entre os muitos momentos notáveis dessa comédia elegante, há o que Norman encontra uma funcionária do Consulado Israelense em Nova York (Charlotte Gainsbourg). Na conversa dos dois, em um vagão do metrô, fica evidente tanto a vocação de Norman quanto sua contrafação. Ele é por excelência um malandro carioca adaptado às condições de temperatura, pressão e cifras nova-iorquinas. Também, claro, é um conversador com luz e charme próprios. Noutro momento brilhante, esse malandro de sobretudo é assediado por alguém que parece agir em relação a ele do mesmo modo como ele age em relação aos outros. Tal situação conforma um mïse en abyme. Recurso tão recorrente nas narrativas judias, e que parece provir de algum modo de um labirinto de expressividade que confina com a sabedoria das Escrituras.
De qualquer forma, a figura de Norman possui um extenso lastro histórico. Vem a ser a do "judeu da corte". O banqueiro que emprestava dinheiro aos soberanos cristãos absolutistas em troca de nobiliarquia, de alguns favores e de privilégios.
Atirando no que vê, Norman acaba acertando o que não vê. E, como de uso em casos assim, o que não vê é "a" causa nobre e justa. A que todos queremos ver realizada. Ou aspiramos dar um contribuição para tanto. No caso do filme, o resgate de uma hipoteca que possibilitará a manutenção da sinagoga no prédio que ocupa e dos serviços prestados pela mesma, há décadas, à comunidade do bairro.
Como se vê, o tema convém à Hollywood. E, bem, se na vida real a ação de malandros fosse assim tão pacífica, abnegada e resultasse em fins igualmente altruístas, talvez houvesse um sentido para a existência. Como os roteiros desses filmes invisíveis e sedutores, que parecem ter saído da capacidade narrativa de um Isaac Bashevis Singer, fazem crer.
...