De manhã, o orvalho
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Conversa #26 Long Strange Trip (Amir Bar-Lev, Estados Unidos, 2017)
As mais de quatro horas deste documentário devem ser enfrentadas por um deahead. Ou ao menos alguém predisposto a ser um deadhead em espírito. (Aliás, um dos "capítulos" deste longo, consistente, convencional documentário é dedicado a eles).
Um deadhead é um fã da banda Greatful Dead. Mas não um fã qualquer. É um que, no passado, intercambiou com outros fitas K7. Essas fitas continham material pirata da banda. Ou seja, versões ao vivo de "clássicos" do grupo. Mais do que possuir essas fitas, um deahead era então capaz de emitir juízos de valor sobre a qualidade das versões ao vivo apresentadas pela banda e relembrar a circunstância geral da festa em que a performance se deu. Ser um deadhead também implica ter viajado longas distâncias para acompanhar apresentações da banda durante suas turnês. Ter sido parte integrante de uma comunidade que deambulava de costa a costa pelo país na esteira do grupo, mais ou menos como fãs de futebol fazem com seu time. A diferença destes é, no entanto, enorme: presença de mulheres, crianças, famílias inteiras.
Em Long, Strange Trip há naturalmente tudo que se espera de um documentário do tipo: a jovialidade do início, certo amadorismo no trato com a grana, os excessos com drogas, o depoimentos de roadies que parecem filósofos, de ex-integrantes, ex-esposas, ex-namoradas, ex-executivos, ex-seja lá o que for: agregados, groupies, fãs, biógrafos, críticos. Está tudo lá.
Mas de fato há uma unicidade do Greatful Dead no sentido de ser um fenômeno americano. Sim, os Beatles são ingleses. Mas ao mesmo tempo são do mundo. O Greatful Dead é como uma 'americana'. Algo nutrido por eles, e que eles não fazem muita questão de partilhar com o resto do mundo, porque diz tanto ao pé do ouvido que parece não ter vergonha de seu paroquialismo. Assim, o Dead poderia ser um item colecionado pelo Smithsonian.
A seu modo, o Grateful Dead era integrado por músicos na acepção da palavra. Talvez estivessem menos interessados na atitude --- embora tivessem um bocado de atitude, e até possam ser definidos como a grande banda hippie dos anos 1970. (Porque os anos 70 é que foram os anos hippies, mais que os 60. Assim como os 80 foram os anos yuppies). Mas o que se quer dizer é que se prestavam menos ao pop. Às sessões de foto, aos figurinos, às luzes, ao cinema. Poucas bandas surgem mais incompatíveis com a estética do vídeo-clipe. Ou seja, estava aqui na própria contramão da história. Eles eram mais devotados à música em si. E, em particular, punham a performance ao vivo como prioridade.Como teste de sinceridade. Tocar sem um público não é a praia do Dead. Fechar-se em experimentações de estúdio não os fazia feliz.
E, então, se vai por todo um catálogo de histórias atreladas a quem toca o quê e de que forma. Ou quem abusava mais das drogas e se foi primeiro. Os Deads têm seus mortos. No caso deles, de modo bem previsível para um banda que já começou atrelada a certa veneração em torno do LSD. Aos poucos essa veneração lisérgica foi concedendo espaço para drogas menos idílicas mas ainda mais dilacerantes e letais, como a cocaína, a heroína e o álcool.
Não poderia ser diferente. Os heróis deles, que eram seus vizinhos, e com os quais chegaram a colaborar -- nomes menos ressonantes -- eram os poetas e escritores da geração beat. Os mesmos, como eles, da cena de San Francisco no limiar dos anos 1960. O líder indiscutível do Greatful Dead, Jerry Garcia, responde pela diversidade de cepa de imigrantes mais recentes, não ortodoxamente anglo-saxões. (Garcia tinha ancestrais galegos e um aspecto 'latino'). Seu livro de cabeceira? On the Road.
Garcia concentrava o heroísmo possível de concentrar numa banda de rock: era o principal compositor, cantava considerável parte do repertório e, como se não bastasse, era também guitarrista solo. Não menos. Isso propiciou aos músicos à volta o privilégio de soarem como uma tremenda banda de apoio. Ou como um ensemble que levou ao rock certa improvisação característica do jazz. No entanto, aclimatando-a de modo um tanto diverso do rock progressivo. Inclusive com alguns requintes, porque ninguém até então fazia a guitarra rítmica soar ao estilo desenvolvido por Bob Weir, cheio de triques e licks que a interpõe a meio caminho entre ritmo e solo. Algo que é designado como 'voice leading'. E que guarda certa analogia com o "método Keith Richards" de tocar guitarra. Com a vantagem de beber diretamente da fonte da música de raiz americana.
Algumas versões da trilha musical de Long, Strange Trip são no mínimo comoventes. Mesmo para aqueles que não são fãs de carteirinhas da banda. "Morning Dew", com suas referências a uma manhã pós-apocalíptica, por exemplo. Uma balada esculpida como retrato de uma geração assombrada pela Guerra Fria e o fim do mundo. O fato de serem músicos permitiu participações antológicas --- nem sempre contempladas neste doc. É o caso de um disco com Dylan. Ou de uma contribuição de slide-guitar de Garcia para "Teach Your Children" do Crosby, Stills & Nash, que é uma assinatura.
Enfim, as diversas fases, formações, os grandes discos, os malogros, os escândalos e o prosaísmo de viver quase sobre quatro rodas e um palco seguem documentados aqui. Um dos trechos mais notáveis vem de quando começaram justamente a fazer um documentário sobre a banda, ainda nos anos 70, seguindo o modelo do cinema direto --- o dos irmãos Maysles de Gimme Shelter (1970). Conta-se que Garcia apresentou toda a equipe às drogas de uso e ocasião. E num determinado momento, ao invés de gravar a banda, a equipe passou a gravar a si mesma um tanto transtornada. Os registros não mentem, e também não deixam de ser divertidos.
Porém, por mais que o assunto seja de primeira linha e o documentário bastante assistível em suas quatro horas e dois minutos, há um certa exaustão de fórmula, apesar da divisão em capítulos. E se fica pensando no esgotamento de um formato (música + voice over + entrevista) que se mostrou pela primeira vez com todas as letras em The Last Waltz (Martin Scorsese, 1978), há quase quarenta anos atrás.
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