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O Pícaro Traduzido a Oriente

Conversa #29

The Handmaiden (Park Chang-wook, Coreia do Sul, 2016)

Poucos filmes recentes possuem a fineza técnica de realização e o senso de humor de The Handmaiden. O roteiro adapta de Fingersmith (Sarah Waters, 2003), romance de temática lésbica passado na Era Vitoriana. Só que o reambienta na Coreia sob ocupação japonesa, nos anos 1930. A fotografia, à exceção de alguns planos calcados em maquetes e computação gráfica, é estupenda. Direção de arte, figurinos, elenco, locações, certo mise-en-scène, contribuem para a boa foto: não há nada fora dos gonzos, aqui. O tom da narrativa alterna entre o hiper-realismo histérico --- tão reivindicado de momento --- e um realismo mais convencional e contido, a despeito de certa atmosfera burlesca, com permanentes ares de conspiração que fazem o espectador especular sobre possíveis idas e vindas na trama. Um roçar a sátira sem cair na farsa deslavada. (Coisa que 9 entre 10 realizadores brasileiros jamais logram). E é meio como se o filme concentrasse em suas duas horas os dois meses de uma série televisiva. Alguma repetição de cenas, sob outros ângulos e pontos de vista, na segunda das três partes, parece estender-se além da conta. O elenco tem seu carisma. O trio de atores mais em evidência cai como luva em seus respectivos papeis: três vigaristas talentosos. E, claro, impressiona a beleza de Kim Min-hee.

Um rico aristocrata japonês, Kouzuki (Cho Jin-woong), já na maturidade, transfere para a sobrinha um encargo que delegava à esposa: ler livros eróticos para uma plateia composta de amigos seus, nobres de certa idade. As leituras conformam verdadeiros eventos teatrais, com o emprego de recursos cênicos --- caso de leques, adereços, um balanço, alçapões, trucagens e até um boneco em escala natural, que é soerguido do solo e comandado por cordéis. Sentindo-se humilhada por ter de ler essas fantasias eróticas para um grupo de senhores "pervertidos", a mulher de Kouzuki, suicida-se. Ela é a tia e heroína de Hideko (Kim Min-hee), a bela protagonista do filme. Esta é cortejada pelo vigarista coreano que atende pelo nome de Conde Fujiwara (Ha Jung-woo). O plano de Fujiwara é o de casar-se com Hideko, com a ampla aprovação do tio, e assim herdar a fortuna deste. Para tanto ele conta com um apoio solicitado pela própria Hideko: uma criada coreana, recrutada a dedo por ele e chamada Sook-hee (Kim Tae-ri). Esta é um trambiqueira --- fina batedora de carteiras --- que vem do mesmo submundo do Conde Fujiwara, embora ganhe a vida como ama-de-leite de um imenso e desconsolado grupo de recém-nascidos, numa espécie de creche improvisada em um cortiço.

O plano do Conde Fujiwara era o de casar-se com Hideko, depois interná-la num asilo e desfrutar de sua fortuna. Mas no correr dos acontecimentos, o charlatão acaba seduzido por Hideko, e quem vai parar no asilo é a criada, Sook-hee. Embora não por muito tempo, já que Hideko e Sook-hee se haviam tornado amantes, e, portanto, conspiravam contra os planos do Conde. Elas destroem a coleção de literatura erótica de Tio Kouzuki, "vingando" assim a tia que se matara de vergonha. Kousuki, por sua vez, aprisiona o Conde Fujiwara, submetendo-lhe a um série de torturas. Quando Kousuki vai castrar Fujiwara com uma tesoura, este consegue escapar, por já ter bafejado todo o ambiente com o mercúrio tóxico de seus cigarros letais. Enquanto isso, Hideko e Sook-hee forjam passaportes falsos, e conseguem escapar para a Shanghai, como um casal, com Hideko disfarçada de homem --- se isso é possível. O filme termina com ambas namorando em sua cabine, enquanto o navio transpõe o Mar da China sob um vaporoso luar.

Uma trama assim tem como antecedentes a literatura picaresca européia dos séculos XVII e XVIII --- e que estende-se a inícios do XIX. Essa literatura, como se sabe, teve origens na Espanha e em Portugal. E depois espalhou-se por toda a Europa, num sucesso análogo ao do Quixote. Podemos pensar no Moll Flanders (1722) de Defoe; no Tom Jones (1749) de Fielding e no Barry Lyndon (1844) de Thackeray. Todas essas, novelas pícaras, já foram transpostas para a tela, com maior ou menor êxito. Em última análise, todas provém do Decamerone (1353) de Bocaccio. Note-se que embora no Decamerone (em larga medida) e no Moll Flanders (a própria protagonista) haja mulheres vigaristas, senhoras de seu destino, as autoras feministas creem que estão dando um novo sentido à literatura ao fazer com que suas heroínas trapaceiem homens.

Só que isso já era proposto por autores homens já de há muito. Caso de Bocaccio, que, no século XIV, percebia que a perfídia humana desconhece gêneros. E que, se aos olhos da sociedade, essa malignidade parecia mais repugnante nas mulheres, era justamente porque, ao ter de se contrapor a uma condição subalterna, provavelmente estas tinham de praticar uma série ainda maior de delitos e contravenções para lograr atingir uma "posição de poder". Como o papel feminino era entendido como mais angelical e materno, esses delitos transformavam, então, suas praticantes em verdadeiras megeras e bruxas. Nada, no entanto, que insultasse ou escapasse à fina análise psicológica desses autores.

Portanto, os equívocos de The Handmaiden são dois: 1. pensar que estar a propor em novidade o romance lésbico, que, como se sabe, é um sub-gênero da tradição pícara no Ocidente, tendo sido amplamente contemplado por autores como o Marquês de Sade, Rétif de La Bretonne e outros libertinas e libertinos europeus. 2. trabalhar mal a questão da gueixa tradicional, que não era apenas uma prostituta qualquer, submetida a vexames ou aos caprichos masculinos, mas alguém com prerrogativas, uma educação esmerada e poderes próprios. Estava longe de se limitar a ter de ler e eventualmente dramatizar textos picantes para velhos senhores meio tarados. A gueixa era possuidora de poderes, privilégios e protagonista de rituais não contemplados em The Handmaiden, apressado que o filme está em decretar certa liberação da mulher oriental, equiparando-a à ocidental. E, assim, tomando-a apenas à luz histórica da evolução social desta última. E, evidente, desprezando toda uma tradição histórica.

São questões bastante complexas, longas, que demandam debate. Mas em outro local, mesmo que essa falta de contexto histórico comprometa em cheio a lógica do roteiro de The Handmaiden. De qualquer forma, o thriller erótico --- que também radica nessa literatura pícara e libertina europeia --- guarda nítidos elementos de uma fábula para adultos. E é nesse sentido que se deve acompanhar a trama contada por The Handmaiden. (E não como algo que de fato se passou historicamente durante a ocupação japonesa na Coreia (1910-1945). Ou que palidamente refrate a condição da mulher na sociedade do Extremo-Oriente em meados do século passado).

Tirando essas inconsistências de roteiro, quanto à pretensão de novidade, e outras que ferem de morte a aspiração da trama a certa coerência histórica, o filme é tecnicamente uma proeza cinemática. E é de admirar que não tenha sido destacado com nenhum prêmio da Academia. (Poderia, por exemplo, ter sido apontado sem nenhum favor à melhor fotografia. Ou ao melhor figurino). Quem sabe, porque a academia goste de vilões inescrupulosos e menos ambíguos, falando em inglês; e os dois vilões de The Handmaiden, um charmoso vigarista apenas tentando se dar bem na vida, e um velhinho obcecado por temas sexuais --- como são a maioria dos velhinhos e velhinhas, aliás --- não sejam exatamente os piores monstros sob a face da terra, além de não falarem no idioma de Shakespeare.

De uma ou de outra forma, embora o lesbianismo de Hikedo e Shook-hee não assome muito convincente desde o início, é bom vê-lo triunfar acima das maquinações de velhacos como o Conde Fujiwara e o Tio Kouzuki. Embora a impressão é a de que o castigo para ambos --- especialmente para o primeiro --- tenha sido demasiado. Isso, se não perdermos de vista que o arranjo entre as duas também é fruto de uma vigarice a mais, intermediada pelo espirituoso Fujiwara. E, ironicamente, foi justamente por essa vigarice que o Conde pagou com a própria vida, da mesma forma que a Tia de Hideko.

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