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Conversa #32
Dunkirk (Christopher Nolan, Reino Unido/ Estados Unidos/ França /Holanda, 2017)
Quando nas águas do Canal a frota de embarcações civis topa com os primeiros navios de transporte militar apinhados de recrutas, a reação é a de uma torcida de futebol. E assim deve ter sido com os quase 400 mil soldados britânicos, franceses e belgas atolados, com água até o pescoço, na baía de Dunquerque, quando viram materializar-se no horizonte as condições de resgate. Isso, depois de dias de espera nas arenosas e geladas praias da França, quase na fronteira belga.
Eles em parte foram salvos por um dos mistérios da II Guerra: a hesitação de Hitler em decretar um massivo ataque aéreo que antecedesse um terrestre. Os soldados aliados teriam sido mortos como piolhos pelas divisões alemãs, se não resgatados a tempo no lapso dessa hesitação. Dizem que Hitler e alguns de seus generais acreditavam que, uma vez repelidos, os soldados britânicos jamais retornariam. (Será que não imaginavam, então, o formidável reforço que viria do outro lado do Atlântico somar-se a eles, dois anos depois: os marines americanos?).
A Retirada de Dunquerque constituiu um dos mais dramáticos episódios da II Guerra. Nela 68.000 soldados aliados foram mortos, feridos ou capturados, e uma imensa quantidade de equipamentos deixada para trás: 2.500 metralhadoras, 20.000 motocicletas, 65.000 veículos militares de vários tipos. Mas o número de mortos e feridos teria sido muito mais avultado, não fossem a hesitação de Hitler, os esforços da marinha britânica e, sobretudo, a ajuda de embarcações civis, que resgataram dezenas de milhares. A dramática evacuação foi, no fim das contas. um sucesso, visto com a distância de confortáveis 77 anos. Embora, no contexto da época, claro, tenha representado uma vitória das forças alemãs.
Mas naturalmente este filme de Nolan quer mostrar vexame, tumulto, o desconforto calamitoso que constituiu toda aquela fuga em massa. E o faz com fogos de artifício e parafernália dignos de um filme de super heróis. Explosões, rostos tisnados. Mais bolas de fogo. Espirais de fumaça. Caças em vôos rasantes. Correrias. Atropelos. Embarques de última hora. Torpedos. Novas explosões. Uma pirotecnia à altura do assunto. E pirotecnia captada pelas lentes precisas de Hoyte van Hoytema a serviço do senso de composição e timing de Nolan.
Tudo posto em 6k e 70mm. É o filme com melhor definição jamais projetado numa tela. Anotem, isso deve desaguar na noite de prêmios do próximo ano. Isto também faz refletir sobre o quanto o problema da excessiva definição --- inevitável, dado ao desenvolvimento do digital --- choca-se com as premissas dos grandes cinematografistas da época do preto e branco. Eles sabiam que alma de um filme, embora passe por, não mora em seus aspectos meramente técnicos. O que diria Gregg Toland desse "excesso de definiçao" de Dunkirk?
Toland era um cinematografista que defendia a perspectiva de o olho do espectador "completar", no filme em preto e branco, as lacunas não preenchidas pela escala de cinzas. Ou seja, na visão de Toland, o espectador imaginava as cores ausentes. E isso, de alguma forma contava para --- de acordo com Toland --- o filme em preto e branco ser mais efetivo até do que o (nascente) cinema em cores:
Paradoxically enough, realism suffers in the color medium. The sky, as reproduced, is many shades deeper than its natural blue. The faces of the characters are usually a straw shade. Three prime colors are now utilized [in three-strip Technicolor, soon to be replaced by single-strip Eastman Colorfilm], but not enough shades are possible with those three. More basic colors would involve too complex a problem to be economically practicable. In the black and white picture, color is automatically supplied by the imagination of the spectator and the imagination is infallible, always supplying exactly the right shade. That is something physical science will continue to find tough competition. ["The Motion Picture Cameraman"].
Mas antes vamos aos desconfortos calamitosos de Dunkirk. Ao modo como são postos em campo neste épico ainda possível em 2017.
Por exemplo, o que era voar sobre o Canal em frágeis Spitfires, que seguiam só alguns metros acima da flor d'água, para evitar os radares. O que era meter seu barco de pesca ou sua lancha de passeio no meio de uma confusão, sem saber da reação desesperada de soldados escapando meio chamuscados de navios de transporte avariados. O que era estar no porão de um desses navios, quando acertados pelo fogo dos caças da Luftwaffe ou, pior, pelos torpedos dos submarinos nazistas. O que era entrever o cavername de um navio desses romper e o mar gelado conduzir a todos para o fundo. O que era esperar por resgate atolado nas águas álgidas do Canal da Mancha durante uma primavera particularmente fria.
O frágil corpo humano já não era lá muita coisa diante de tanto aparato. E essa profusão de aparatos já apontava o futuro: uma guerra que, mediante drones e outros dispositivos não tripulados, o corpo humano sequer efetivamente chega a agir, a se propor, na linha de frente. Mas essa época asséptica --- como o "sexo virtual" --- ainda não havia chegado.
E é de se pensar que o desconforto e o vexame expostos no filme são fichinhas diante da tragédia real vivida pelas tropas aliadas naquela frio final de maio de 1940. Afinal, num filme, a violência gráfica da guerra pode ser proposta por um artista cuja especialidade é glorificar super heróis. E, mesmo ao tentar dimensionar o vexame, a guerra vai surgir apenas com um espetáculo graficamente compensador aos olhos. "Super heroizada", como deve ser. Especialmente na grande tela. Aqui deve-se recordar a mordacidade das teses de Paul Virilio:
Ao observar atentamente as multidões que se espremiam para celebrar as missas negras do cinema, Hitler declara em 1938: "as massas não têm necessidade de ilusão, elas precisam de ilusão também fora do cinema e do teatro, do lado sério da vida".
Centrando-se inicialmente no drama de um único recruta inglês, Tommy (Fionn Whitehead), que vem fazendo seu caminho desde antes das linhas aliadas, protegendo a entrada da cidade, o filme traça um balanço dessa coreografia bélica, a partir de diferentes pontos de vista. Há o olhar do oficial britânico, que comanda a evacuação em um dos molhes da baía, o Comandante Bolton (Kenneth Branagh); o do capitão de um bote pesqueiro, Dawson (Mark Rylance), onde também seguem seu filho (Tom Glynn-Carney) e um jovem amigo deste, George (Barry Keoghan), que acaba morto numa escaramuça com um soturno sobrevivente de um balsa de transporte afundada por submarinos alemães; Collins (Jack Lowden), piloto da RAF, cujo caça é abatido, e vários outros. Quer dizer, os outros, a exemplo destes repassam o ponto de vista de quem está em terra à espera de transporte; no mar --- em embarcações civis ou militares, rezando para desembarcar a salvo nas falésias de Dover; ou no ar, em frágeis caças batendo-se com esquadrões da Luftwaffe.
É o suficiente para se ter uma ideia do que significou esse episódio estratégico. Embora dele esteja ausente todo um filme que não entrou neste filme: o ponto de vista alemão.
No final, enquanto do lado inglês, recrutas chamuscados recebem quartilhos de cerveja pela janela de trens --- trens que ainda não chegaram à periferia do planeta, aquela mesma navegada por Conrad mais de um século atrás --- do lado francês, um piloto, depois de fazer diabruras com seu Spitfire, busca uma praia deserta para aterrisar planando, já sem combustível. O trem de pouso arreia a muito custo. Ele imediatamente desce da cabine, e ateia fogo ao avião, antes de ser cercado por uma patrulha alemã. O cavaleiro solitário cumpriu mais esta vez sua missão. No trem, o recruta repete em voz alta o célebre discurso de Churchill lido de um jornal:
We shall go on to the end. We shall fight in France, we shall fight on the seas and oceans, we shall fight with growing confidence and growing strength in the air, we shall defend our island, whatever the cost may be. We shall fight on the beaches, we shall fight on the landing grounds, we shall fight in the fields and in the streets, we shall fight in the hills; we shall never surrender.
Este é hoje, mais do que nunca, um discurso de vencedores vacilantes, mais de três quartos de século depois do último fato histórico que de fato estremeceu a Europa. Discurso de vencedores que, mais do que nunca após o Brexit, ano passado, assinaram a condição de vencidos. Depois de Dunquerque e do fim guerra, os alemães retornariam. E, com a ajuda involuntária dos franceses --- sempre os imprevidentes da hora --- tomariam o continente de assalto.
Desta feita, economicamente.
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