Quando Ferocidade Passa Longe das Jaulas
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Conversa #34
The Zookeeper's Wife (Niki Karo, Estados Unidos/ Reino Unido, 2017)
A despropositada quantidade de filmes sobre judeus na II Guerra só perde para o encanto e a eloquência desses mesmos filmes. Quer dizer, desproporção em relação às outras vítimas do nazismo. Pois, segundo alguns historiadores, morreram mais poloneses católicos nas mãos dos esbirros de Hitler que judeus. Ou, de outro modo, filmes sobre Ciganos, Homossexuais, Testemunhas de Jeová, Gente com Necessidades Especiais, Ucranianos e Russos são também raros.
Na verdade, uma gota d'água no universo de filmes sobre vítimas do nazismo, que são de algum modo assumidas como uma espécie de monopólio judaico. De outro modo, também se fala pouco na tela de outros genocídios: na Armênia, nos Balcãs, em Biafra, na Nigéria, no Sudão, na Síria, etc. É necessária uma revisão aqui. Não é de hoje. Enquanto isso não vem, ano após ano, lançam-se bons filmes sobre a Shoah, a reboque do poderio judeu em Hollywood e na indústria do entretenimento de não poucos países. (Inclusive Argentina e Brasil).
Em 2017, uma das produções mais arquetípicas a tratar do tema é justamente este A Esposa do Zelador do Zoo. Nele, um casal de poloneses jovens, bem de vida, felizes, possui e administra um zoo em Varsóvia na iminência da II Guerra Mundial. Particularmente, a esposa, Antonina Zabinska (Jessica Chastain) irradia joie de vivre ao percorrer as alamedas do zoo em sua bicicleta, alimentar e cuidar dos animais, organizar as coisas, abrir os portões ao público. Seu cotidiano parece provir graficamente de um musical.
No entanto, pressentindo problemas no horizonte, Jan Zabinski (Johan Heldenbergh), o marido, sugere que vendam o zoológico e migrem para longe da Alemanha. A mulher, contudo, é de opinião contrária: ficar, resistir. Um dos conhecidos do círculo de amizade do casal é um zoologista alemão, Lutz Heck (Daniel Brühl). Heck vem a ser estreito colaborador de Hermann Göring, o sinistro fundador da Gestapo. Heck, reputado como "o zoologista de Hitler", nutre uma paixão platônica pela exuberante Antonina.
Alguns meses depois, quando a guerra irrompe, o zoo é bombardeado. Muitos animais são mortos, feridos, sacrificados ou extraviam-se pelas ruas de Varsóvia. Os Zabinski, porém, escapam ilesos. Seu plano de sobrevivência é o de transformar a área do zoo numa criação de porcos, de modo a fornecer carne (inclusive para o exército de ocupação alemão). Afinal, era necessário ganhar a vida...
Jan Zabinski, no entanto, possui muitos amigos judeus. Através desses contatos, começa a abrigar clandestinamente, nos porões do zoológico, uma pequena comunidade de perseguidos. Os estratagemas para conduzir os judeus do Gueto ao zoo e mantê-los longe dos olhos dos alemães estão no centro da trama deste drama de guerra. O casal é movido por um impulso altruísta e incansável. E o zelo com que se dedica à causa termina por despertar as desconfianças de Heck.
Na linhagem de The Uprising (2001), The Pianist (2002), The Courageous Heart of Irena Sendler(2008) e tantos outros, este A Esposa do Zelador trata especificamente de um local emblemático para os judeus à época do III Reich: o Gueto de Varsóvia. É de lá que vêm os que se refugiam no zoológico. E, não por acaso, tem a ver com o Gueto as duas cenas mais impactantes. Na primeira, uma adolescente de não mais de 14 anos é violentada brutalmente por dois soldados nazistas, sob os olhos de Jan Zabinski. Na segunda, quando já se tinha formado uma pequena comunidade nos anexos do zoo, sente-se algo, como se caísse neve um tanto fora de época: eram na verdade cinzas, pois estavam a incendiar o Gueto.
O filme baseia-se em fatos reais. Antonina e Jan Zabinski ajudaram a salvar cerca de 300 judeus num local que era o próprio epicentro da perseguição: Varsóvia. Por isso são declarados pelas autoridades israelenses como "Justos entre as nações". (Um privilégio que, poucos sabem, foi concedido à esposa de Guimarães Rosa, Aracy de Carvalho, cognominada "o anjo de Hamburgo"). Mas não é incomum que filmes como este, baseados em fatos reais, tornem-se demasiado filmes, para parecer verdadeiros.
Inevitável que algum clichê respingue mesmo sobre um bom ator como Daniel Brühl. (Neste filme com o mesmo bigode de ocasião com que também interpretou recentemente um comissário de polícia na Berlim do III Reich: Alone in Berlin (Vicente Pérez, 2016)). As performances de Chastain e Heldenbergh são corretas. Um dos vai e vens da trama é o de Antonina (Chastain) ter de lançar algum charme para Heck (Brühl), tentando despistar o paradeiro dos perseguidos. Isso acaba por despertar os ciúmes do marido (Heldenbergh). Uma menção honrosa vai para Shira Haas, na pele de Úrsula, a adolescente judia estuprada.
A Esposa do Cuidador do Zoo é um drama de guerra. Bastante convencional e mainstream em suas astúcias cinemáticas. Um tanto menos quanto a pôr um bando de animais exóticos debaixo do bombardeio alemão. Mas, a exemplo de tantos outros filmes, conta uma história de perseguição, crime de Estado e genocídio --- bem como de quem se contrapôs a isso, pondo em risco a própria vida. O faz com alguns (escassos) méritos, e lançando mão de uma inusual leveza, em determinados passos. Mas será que sua debilidade também não provém dessa leveza, tão patente e demasiada no início?
A vida do casal Zabinski no começo do filme parece mais um conto de fadas ou comercial de margarina. A leveza de movimentos de Antonina ameaça sair de um musical. E é pitoresco que alimente o hipopótamo com maçãs, e seja seguida, aonde quer que vá por um bebê camelo. Mas tal soma de clichês não ajuda muito a trama. Como se não bastasse, seu marido, mais do que ela, é quem de fato empenha-se pela causa judaica. Inclusive transportando clandestinamente prisioneiros do Gueto para o zoológico. Um filme assim herda vários lugares-comuns de produções passadas. E deve legar outros tantos às futuras.
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