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Palinódia


Conversa #44 - Reclassificando Clássicos [3]

On the Waterfront (Sindicato dos Ladrões (pt-Br) Elia Kazan, 1954 - Dir. Fotografia Boris Kaufman)

No aveludado mundo em preto e branco, levemente granulado, de Boris Kaufman, Elia Kazan faz transcorrer os sucessos deste drama policial clássico. O cenário é o porto de New Jersey, defronte a Nova York, onde os homens vivem espremidos entre cortiços redbrick e os grandes navios do cais. Apertados entre a polícia de um lado, e um forte sindicato, dominado por velhacos de toda espécie, do outro. Não há muita saída para homens como Terry Malloy (Marlon Brando), ainda mais quando seu irmão, Charley "the Gent" (Rod Steiger) é o braço direito do chefão do sindicato. O ambiente é brutal. Selva, onde todos têm de "prestar favores" aos poderosos para sobreviver no meio e botar um naco no estômago dia após outro ("o fim da história" ainda distava meio século). Eles são diaristas. A escolha dos que vão fazer a estiva se dá na contramão de "serviços" prestados aos graúdos do sindicato.

O filme guarda um aspecto geral de documentário, e é gravado em larga medida em locações. O rosto duro, esculpido na lida de horas extraordinárias dos estivadores, conforma uma espécie de prolongamento da sordidez ambiente. Não há muita gente a quem se possa confiar a guarda do cachorro por cinco minutos. E antes de passar para as docas a trabalho, homens maduros, já chegando na primeira velhice, imploram como mendigos o direito de emprestar seus músculos por um punhado de dólares diante do capataz do sindicato. A um dado momento, não se sabe se por se encontrar pressionado ou apenas para ver o circo pegar fogo, o capataz lança as fichas para o alto, e os homens as disputam no chão como ratos famintos sobre aparas de queijo. Os "capos" do sindicato, bem nutridos e agasalhados, divertem-se com o alvoroço.

No entanto, o vigário da paróquia, Padre Barry (Karl Malden), testemunha a cena. Ele não está bem a par da situação, sugere aos trabalhadores não selecionados que procurem o amparo do... sindicato. Então, um grupo de estivadores e catraeiros sugere ao pároco a ameaçadora dinâmica de trabalho: é o próprio sindicato que seleciona os diaristas. Longe da confusão, junto aos guindastes, Terry Malloy folheia uma revista de garotas, quando é requisitado para um trabalho extra. Protesta vivamente por ter sido interrompido:

"Why me?" --- diz ele, justo um dos favorecidos pelos líderes sindicais, por meio do prestígio do irmão junto ao chefe.

Inadvertidamente, o pároco faz uma reunião com os diaristas preteridos pelo sindicato em sua igreja. Acompanhando tudo está Edie Doyle (Eva Marie Saint), uma jovem cujo irmão foi recentemente assassinado. E ao que tudo indica, a mando do virulento líder sindical John Friendly (Lee E. Jacob). Conta entre o trabalho extra de Terry Malloy (Brando) justamente o de monitorar essa reunião. Embora ele o faça por outras razões: está interessado em Edie Doyle (Eva Saint Marie). Como se não bastasse Terry era o melhor amigo do irmão de Edie, Joey Doyle, justamente o assassinado a mando da cúpula do sindicato.

Quando o padre indaga quem sabe de pistas sobre o assassinato de Doyle, todos se esquivam. Porém, notando que Terry está lá justamente para espioná-los, um dos trabalhadores preteridos pergunta ironicamente se ele não sabe quem matou o estivador. Terry chega a troçar da pergunta, pois mostra-se demasiado confiante na rede de poder dos corruptos sindicalistas. Por mais que o padre os incite a revoltar-se contra esse estado de coisas, os estivadores estão céticos: depor contra o poderio do sindicato seria suicídio. A própria irmã e o pai do estivador morto não se mostram encorajados o suficiente para romper o silêncio imposto, e entrar com uma denúncia.

De repente, enquanto o padre se pronuncia, uma vidraça é partida à pedra, e um grupo de rufiões faz ouvir seus porretes e tacos de beisebol batendo no passeio, em torno da igreja. Quando às pressas, os trabalhadores abandonam o recinto, são recebidos na porrada ao longo da estreita viela que conduz ao átrio. Nesse ínterim, Terry consegue resgatar Edie, e com ela escapar por um alçapão de emergência, nos altos do edifício. A vida é dura no cais. Mas em torno dessa aspereza, começa a nascer a flor: o afeto entre o brutamontes Terry e a doce mas determinada Edie. Ela está estudando para se tornar uma freira, porém bem pode mudar de ideia.

Há uma dimensão bressoniana na imagem. Quando, por exemplo, Terry discorre sobre criação de pombos para Edie, na coberta do prédio onde moram, uma tela os mantém em espaços distintos. Algo análogo se dá no Pickpocket (1959) de Bresson, que foi realizado cinco anos depois, mas parece guardar rastro desses detalhamentos espaciais esquadrinhados por Kazan e Kaufman. (Assim como certamente possui um débito para com um filme anterior: Pickup on South Street (1953), de Sam Fuller, com fotografia de Joseph McDonald). A criação de pombos nos tetos dos cortiços nova-iorquinos, como potenciais locações, aliás, ocorre brevemente em Side Street (Anthony Mann, 1950 - não, por acaso, também fotografado por McDonald).

De fato, o rosto de Eva Marie Saint, em seu filme de estreia, possui uma qualidade angelical. Esse rosto irá reaparecer encarnado por outras atrizes em filmes tão distintos como o Pickpocket de Bresson e o La dolce vita de Fellini. Sempre como símbolo de uma cristandade meio morta, amesquinhada, mas cujas pulsões mais íntimas não vão desaparecer tão sumariamente da face da terra, como vetor humanista. E aí está Bazin para prová-lo. Ou ainda Deleuze, cuja estrutura de pensamento passa tão longe da cristandade em esquema, mas ainda assim afirma com todas as letras no Tempo-Imagem::nenhum outro cinema entrete mais que o de Dreyer, Besson, Rohmer, o dos cineastas cristãos. E não se sabe ao certo por que não incluiu Tarkovski na lista.

O enfático ataque da orquestra soando no prosaísmo da cena em que Terry tenta persuadir Edie a tomar um copo de cerveja, numa espelunca local, nos faz, de repente, lembrar que estamos em 1954, e que cenas assim eram legendadas (sonoramente) com esses temas melodramáticos. Seguem então para uma lanchonete. Edie indaga sobre a vida de Terry. Ele lhe conta um trecho. Vida de órfão, dura, sem muita remissão. E protesta diante da curiosidade dela.

"Everybody care about everybody else", lhe diz Edie na espelunca.

"Oh, what a fruitcake you are", replica Terry completamente rendido à beleza da moça.

Terry, quando acariciado de leve por Edie mais parece um Frankenstein recebendo um mimo. A caracterização de Brando é pesada. Cheia de esgares e maneirismos que vem de personagens anteriores. Ou do próprio Brando. São heranças do 'método'. Eva Marie Saint, talvez por iniciante, não carrega tantos vícios de atuação. Ela porta algo no rosto. Uma fortaleza. Mas uma fortaleza angelical. Uma beatitude. Uma integridade. Uma calma. Ela sabe que se empregar seus encantos (de densa humanidade) pode colher alguma coisa do brutamontes de "bom coração". E empenha-se nisso.

O coming of age de Terry Malloy é também a chegada à idade adulta de toda uma geração de anti-heróis que medrou nos anos da Guerra Fria. Malloy tem algo de Dean Moriarty e de Holden Caulfield, além de ser primo das personagens encarnadas por James Dean e Montgomery Clift. Ele é mais um sinal de alerta na refrigerada e confortável América dos anos 1950, que será revirada às avessas nas próximas duas décadas.

Há também as complexidades políticas. Não só Kazan, como Lee J. Cobb e o roteirista Budd Schulberg delataram colegas da indústria cinematográfica à infame Comissão de Atividades Anti-Americanas: o braço judicial do macartismo. Isso custou ao filme --- que trata justamente de corrupção no meio sindical --- um episódio a mais de mal-estar junto às esquerdas dos Estados Unidos e da Inglaterra. Mesmo que essa corrupção sindical fosse de fato um problema crônico em algumas metrópoles. E afetasse várias categorias profissionais estadunidenses à época. Ou ainda mesmo que as questões do filme transcendam em muito a divisão esquerda/direita proposta pela política representativa institucional ou convencional.

Essa é já uma atitude pós-utópica. De ilusões perdidas em campos de batalha. E de uma secular indisposição para a conversa entre gerações. De uma constante ameaça de apocalipse rondando a libido como um cachorro sarnento. De se saber que a decência da vida de adulto é uma construção mais falha que o orçamento de certos estádios da Copa do Mundo de 2014. Mas talvez seja inescapável que tipos céticos e auto-destrutivos como o Robert Mitchum de Out of the Past (1947), o Paul Newman de The Hustler (1961) e Hud (1963), o James Dean de East of Eden (1955) e Rebel Without a Cause (1955), a Marilyn Monroe de The Misfits (1961), além dos outros anti-heróis de Nicholas Ray, Samuel Fuller, Robert Brooks, Martin Ritt, Robert Aldrich, Joseph H. Lewis e Robert Rossen são ainda assim incomparáveis com os protagonistas dos filmes ou da vida de hoje.

Há muito mais sinceridade, empatia no desencanto desses tipos desajustados, vivendo numa época de extrema ameaça, do que no conforto digital, na confortável indignação via redes-sociais, e na comodidade refrigerada de pseudo-vítimas que se põem sob o guarda-chuva das ditas minorias. Abusando desse discurso como forma de estratégia. (Aqui, não muito diversa, dos abusos dos sindicalistas à época de On the Waterfront). E isso, frequentemente para melhor acusar, denunciar, numa atitude vindicativa, de verdadeira caça às bruxas, que testemunhamos hoje em dia, numa espécie de estranha inversão. Ou seja, em que a própria vítima é a que se propõe com a truculência e a intransigência típicas do acusador, do inquisidor, do macartista.

On the Waterfront foi gravado predominantemente nas docas de Hoboken, New Jersey, defronte a Manhattan. Usaram-se duas igrejas católicas: uma para o exterior, outra para o interior. O aspecto geral é o de uma produção neo-realista italiana, com forte intromissão documentária e presença de locações urbanas, como demandava o espírito da época. Poucos filmes na história do cinema foram melhor fotografados.

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