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Personagem Mais Real que Autor


Conversa#37

Neruda (Pablo Larraín, Chile/ Argentina, 2016) - cin. Sergio Armstrong)

Com sua tira de cabelo artificial para abreviar a calva e maneirismos de ator de teatro, Luis Gnecco conforma um Neruda de tipo. Isso não é de todo ruim. Pior seria tentar um Neruda à semelhança do real e naufragar. Por sua vez, o carisma e o humor chegam ao filme com a entrada em cena de Gael García-Bernal.

A fotografia parodia o filme noir, com muitos contornos na contraluz e alguma despropositada difusão. Com filtros que puxam a paleta para os azuis, definindo uma tonalidade pastel, temperada mas com muitos flares, tanto nas externas quanto em interiores. Transcorre quase o tempo todo em bem escolhidas locações. Um ou outro equívoco sobressai, mas é exceção. Como contrapor o perfil de Neruda a uma persiana por demais carregada de luz sem entrecortar-lhe a testa? A luz e o aspecto geral são as de um noir citado em regime de farsa.

A citação também segue aos figurinos: sobretudos, coletes, fedoras, óculos de aros finos, lenços, bigodes, suiças, gravatas, suspensórios, mocassins lustrosos, sapatos bicolores, boinas e charutos. Há um excesso de Europa ou de pastiche de Europa. Tudo um pouco no registro do exagero. Os uniformes e capacetes do exército chileno parecem decalcados de seu sucedâneo alemão à época da II Guerra. E, portanto, pode-se perceber que a preocupação com a direção de arte é um das constantes desta produção.

Introspectiva, quase toda a personagem do policial-artista --- figura de obsessão, entre outros do parodista-mor, Roberto Bolaño; mas também de Kafka ou dos autores clássicos do pulp fiction americano --- é dada a conhecer por voice-overs que funcionam como seus pensamentos íntimos, e conduzem aos momentos mais hilários do filme, confirmando o talento cômico, a versatilidade de Bernal como o grande ator latino-americano de sua geração --- e quem tiver dúvidas assista a série televisiva Mozart in the Jungle --- além de alguns bons exemplos do que Pasolini chama de discurso indireto livre.

As divagações estéticas de Peluchonneau (Bernal) são divertidíssimas. E como que dialogam não exatamente com a escritura de Neruda, mas com o fanfarronismo de esquerda que este alimenta, enquanto leva uma vida aburguesada e cheia de pequenos luxos e mundanidades. O contraste entre Neruda e seus camaradas do Partido é uma das boas pilhérias do filme. Os camaradas são austeros, quase ascetas. Escandalizam-se com a vida luxuosa (mas também "libertina") que o poeta leva, em ambientes sofisticados, cercados por serviçais, farras e certa futilidade burguesa.

O momento em que o Comissário e seu bigode escovinha reconhecem no fundador da polícia chilena, Olivier Peluchonneau, além de seu pai carnal, seu pai espiritual --- embora ele fosse filho bastardo --- é de bolar de rir. Os dois são efetivamente parentes, mas o modo solene com que Peluchonneau contempla a estátua do "fundador", no vestíbulo de uma sombria chefatura de polícia, passa a medida da loucura interior de todo homem. Em todo ser humano, sim, mas que parece tornar-se mais aguda em um fascista, porque um fascista não tem lá muitas dúvidas. E talvez seja esse o lado mais curioso desta personagem e a fonte de sua comicidade: ele é um fascista com dúvidas, meio humanizado. Como se a qualquer momento pudesse questionar a própria opção política, o que muito obviamente não ocorre. Embora em uns quantos momentos tenha insights humanistas, como quando pondera em um bordel:

---Mi madre trabajó en una casa como esta por más de treinta años. Cada una de estas mujeres es mi madre. Soy un hijo de cortesana. Soy un hijo de infección venérea.

De fato, algumas de suas observações meio amalucadas parecem mais poéticas do que os ultra-poéticos poemas, melosos, demagógicos, previsíveis, populistas, derramados e surrealistas de Neruda, ditos numa inflexão teatral e empostada.

As personagens passam boa parte do tempo caminhando neste filme. Pelas ruas, distribuindo poemas-panfleto, em pátios de quartel, praças ou percorrendo as especulares ante-salas do poder. Como se estivessem num conto de Kafka. Como se estivessem em "Uma Mensagem Imperial", por exemplo, no qual o senso de distância entre mandatários e povo tende ao infinito. E ainda para lembrar Kafka e Walser, Peluchonneau é humilhado por um assessor do presidente, conformando assim a figura rematada do pequeno funcionário: a engrenagem ignóbil, desimportante de um aparato descomunal, o súdito que não é mais que sombra, à margem das margens:

---Um superior civil? Um civil nunca que será superior a mim --- pensa Peluchonneau, em despeito, com seus botões.

Do outro lado, há muito de Ziembinski na aparência física, no gestual, na voz, mas sobretudo no estilo de atuar, tão teatral, de Luís Gnecco, que provavelmente nunca ouviu falar deste ator polonês que emigrou para o Brasil.

O Comissário Peluchonneau admira Neruda de várias formas. A pior delas se dá através da inveja: acha sua casa de Isla Negra "linda". Sente-se lisonjeado de possuir um livro de poemas dedicado a ele, ainda que ironicamente. O policial inveja o grau de amizade e solidariedade do poeta por uma travesti, que canta num bordel, porque ele mesmo não consegue ser tão nobre sem fazer força. E sobre a primeira esposa do poeta pensa:

---Que loira mais quente, eu não a teria deixado, nunca --- quando a detém em uma estação ferroviária, para um interrogatório. Depois, efetivamente se apaixona pela mulher. Uma paixão esgarçada, platônica, naturalmente. E que logo se esvai quando esta dá uma declaração extremamente favorável ao poeta numa entrevista de rádio, por não ter a mínima noção do que de fato se passava. Ou seja, de que ela estava sendo usada como vetor de propaganda pró-governo.

Em determinado momento no quarto inicial, pode-se pensar que o protagonista deste filme, está longe de ser Neruda. O poeta seria pretexto para a comicidade da personagem do Comissário Peluchonneau brilhantemente interpretada por Bernal. Então o revezamento entre ambos, Neruda (Gnecco) e Peluchonneau (Bernal), é de início francamente favorável ao segundo. E por conta disso se tem a impressão de que o filme é muito mais uma comédia do que na realidade vem a ser.

Mas comédia é também bom veículo para tecer comentários políticos. E, no filme, o chefe de certa prisão política, que mais se assemelha a um campo de concentração em pleno deserto do Atacama, é apresentado por Peluchonneau como um jovem e eficiente capitão do exército chileno: um tal Augusto Pinochet.

Mas está claro que, por outro lado, há uma observação irônica quando se vê Neruda ditando um poema e simultaneamente bolinando a datilógrafa. Depois, esse mesmo poema é repetido por multidões de rosto sofrido em cortiços e prisões. Numa espécie de sanção ou aclamação. Embora quem de fato desnude a posição de privilégio de Neruda é uma admiradora, Silvia (Amparo Noguera). Ela está embriagada numa festa em que o poeta encontra-se clandestino. E diz coisas que ele não está acostumado a ouvir do seu séquito de puxa-sacos. Como, por exemplo, que ao governo chileno é mais apropriado persegui-lo que prendê-lo. Que ao governo chileno é mais útil ter um dissidente como Neruda --- verborrágico mas no fim relativamente inofensivo --- que de um outro tipo.

Na privacidade, Neruda é também uma construção estimulada por sua habilidosa segunda esposa, Delia Del Carril (Mercedes Morán), uma aristocrata argentina, que lhe cobra sempre uma pose e uma dicção dramáticas na hora de dizer poemas.

A hesitação entre Neruda e Peluchonneau parece fazer parte inseparável da lógica do filme. Não poderia ter sido melhor explorada. É sua chave de decifração. E fica evidente que ao retirar certa densidade --- ou mesmo integridade --- da figura de Neruda, Gnecco compensa habilmente com momentos de uma fina humanidade, como no caso da carícia ao travesti-cantor ou ao abraçar a mendiga com feições indígenas em Valparaíso. Mas o momento em que o Comissário se mostra mais ultrajado é quando Délia lhe revela que, em certa medida, ele não passa de uma personagem secundária de Neruda. E então um Peluchonneau contrariado diz à esposa do poeta:

---Non, yo no soy un personaje secundario.

Delia tenta convencê-lo do contrário. O comissário é na verdade o prisioneiro, enquanto Neruda é que é livre. Livre inclusive para supor os pensamentos e rotinas do perseguidor, encerrado nas estreitezas de seus preconceitos e de sua posição. Peluchonneau se indigna então diante da dualidade da trama do romance. E é quando ressalta mais à flor da pele seu temperamento fascista:

---Lo que usted está diciendo es una basura moderna. Un cordero dorado.

Depois, sozinho em seu aposento, ele repete:

---Personaje secundario, yo? Non, no señor, porque te voy a agarrar.

No entanto, o filme, ao tomar demasiado a sério a broma entre ficção e realidade em torno da triste figura de Oscar Peluchonneau, acaba por se alongar excessivamente. E perde considerável parte de seus inolvidáveis humor e encanto iniciais. Da metade para o final, converte-se num épico recheado de paralelismos e meta-narrativas que teriam ficado melhor se menos explícitos. A impressão é a de que o filme sucumbe ao mais fácil: à ambição intelectual. Quando poderia ter optado pelo subentendido, a alegoria, o mistério, o humor. Ou seja, às suas intuições iniciais.

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