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Num momento de distração

Conversa #43 - Reclassificando Clássicos [2]

The Reckless Moment (Max Ophüls, Estados Unidos, 1949 - Dir. Fotografia: Burnett Guffey)

Ninguém usa melhor o melodrama contra o melodrama do que Ophüls em The Reckless Moment. É uma lição de sutilezas. O filme é feminista avant la lettre. Mas o que há por trás das palavras e das imagens aqui é muito mais compelente. Todos os signos do melodrama são retorcidos. O lar burguês posto entre parênteses. A condição de mãe e esposa profundamente questionada.

Bea Harper (Geraldine Brooks), uma adolescente apaixonada por um inescrupuloso homem mais velho, Teddy Darby (Shepperd Strudwick), acaba matando-o acidentalmente. Sua mãe, Lucy Harper (Joan Bennett), faz de tudo para desviar a atenção da polícia. Mas um par de malandros descobre a correspondência de Bea para Teddy, e começa a chantagear a mãe. No entanto, o chantagista que entra em contato com Lucy, Martin Donnelly (James Mason), acaba apaixonando-se por ela.

Ophüls é um estilista. Mantém a figura principal de seu campo à esquerda do quadro. Digamos que essa figura seja a "autoridade". Não propriamente autoridade no senso moral. Mas aquele que sabe adiante aquilo que o outro quer saber. Seja qual for o motivo, o da esquerda antecipa o motivo.

Em surpresa, um dos raros momentos em que Guffey usa difusão é não para glamurizar um rosto feminino, uma diva; mas para realçar o rosto de Mason numa cabine telefônica. E ligando para dizer que seu parceiro, Nagel, faz questão que o dinheiro seja entregue logo na segunda e não na quarta. Ou seja, mais pressão nos ombros da pobre mãe e dona de casa. No plano lateral que suplementa e antecede a difusão, o centro do foco não é Donnelly, mas o bocal do imenso aparelho telefônico.

"I'm afraid there is very much a Nagel" --- informa Donnelly a Lucy, depois de esta questionar a existência de um comparsa, durante a conversa no ferryboat, do qual ambos veem uma lancha da polícia atravessar a Baía de Balboa, bem na frente deles.

Em seguida, num tom sentimental, que vai mais e mais se enchendo de afeto, às raias do melodrama, reforçado pelo tema musical com violinos, Donnelly praticamente se declara para Lucy --- um pouco como amante, bastante como filho:

"I wish things could have been different in many ways".

Mas, algum tempo depois, ao sentir que seu pupilo no crime fora fisgado pela vítima, o durão Nagel diz:

"You know this lady is not in your class, Martin".

A profusão e predominância dos objetos faz lembrar da ênfase com que Deleuze nos expõe a importância deles para cineastas como Ozu. Deleuze os qualifica de "naturezas mortas". Nesse sentido, Ophüls é um cineasta que trabalha obsessivamente a natureza morta. Isto é, a direção de arte. A distribuição dos objetos no espaço. Quando sua câmera, em obstinado travelling, acompanha a movimentação das personagens, geralmente o faz passando por trás de uma série de objetos: balaustradas, abajures, pilares, vidraças, árvores de natal, caixas registradoras, corrimões, estantes, armários vazados, etc. Isso, a despeito de ser uma convenção, uma estilização profunda do registro das imagens, é recurso que tem a ver com um desejo simples: garantir uma espécie de verossimilhança realística para o filme: ganhar a confiança do espectador ao colocá-lo na condição de testemunha.

Mas há uma cena em que essa presença da natureza morta é tão profusa que ameaça diluir a figura humana. É justamente quando Lucy faz contas, sentada na escrivaninha do quarto. Vemos uma elaborada luminária, o telefone, vários blocos de anotação, um fichário, um livro aberto, e, mais adiante um abajur junto a uma poltrona, à frente de uma janela com cortinas, atiçadores, uma lareira, sobre cuja cornija há um candelabro e um adorno. A casa é sufocantemente burguesa. Mas para mantê-la assim, é necessário que Lucy confira meticulosamente a pilha de recibos que estão largados justamente sobre a cama. Quer dizer, sobre a cama não há um marido, mas uma pilha de papéis que assegura a "normalidade" da casa, do lar de classe média. Como a ênfase em campo nos quadros de Ophüls é deposta à esquerda, é aí que se encontra a luminária acesa, que joga reflexos de luz no cabelo castanho escuro de Lucy. Mas, mais do que isso, de roupão, lápis à mão, óculos no rosto, uma atitude absorta, fazendo contas, ela assume uma postura estranhamente "masculina" para a época. A postura daquele que gere a casa.

Poucas mulheres em filmes da década tem essa prerrogativa de atitude e de poder. A atitude de lançar-se à defesa da família numa crise aguda durante a ausência do marido. (E sem poder contar com seu auxílio nem que em sugestões de como agir, ao telefone). Quando a onipresente Sybil (Frances E. Williams), uma criada negra, entra para deixar o jantar numa bandeja, a câmera passa significativamente por trás do abajur que vemos em contraplano. Ou seja, em Ophüls os campos/contracampos não desprezam os objetos. A força semântica e sensual dos objetos. Mas, o contraplano também revela ainda um detalhe importante: um quadro tomando significativa porção da parede às costas de Lucy. Por que esse quadro é importante? Porque reforça a veleidade artística de Bea, sua filha. Sendo Bea uma estudante de Belas Artes, deduz-se que a tela é provavelmente dela.

Em seguida, esse esforço da dona de casa fazendo o 'make ends meet' é fundido com Lucy descendo escadas com um gerente de banco, enquanto este lhe explica as condições de um determinado tipo de empréstimo. Ato contínuo, ela escolhe uma joia valiosa no cofre do banco, e então a vemos na sequência seguinte subindo, com alguma hesitação, a escadaria de uma casa de penhores onde no último degrau se lê: "No questions asked". Ou seja, ela faz o possível para não privar a família de nada e ao mesmo tempo pagar aos chantagistas pelas cartas incriminadoras de Bea.

Aqui, a obsessiva preocupação de Ophüls com os objetos, o faz pôr um pequeno aquário com dois peixes dourados no balcão de recepção da casa de penhores. Mas faz também com que a avalista que conversa com Lucy, numa espécie de cabine privativa, comente que cultiva em casa a rosa que Lucy provavelmente não vê, no vaso, diante de si. Mais importante que isso: vemos a avalista conversar com Lucy por um reflexo na vidraça. Naturalmente à esquerda dela, porque, como já dito, diante de Lucy, a atendente é a autoridade, a que possui o contexto. A detentora das regras do jogo na modalidade empréstimo.

Assim, é a atendente que informa: não aceitam joias como garantia, seguindo uma lei estadual. Essa é uma casa de penhores ainda bastante dentro da legalidade. E então Lucy é forçada a descer mais um degrau (inclusive na moral burguesa): buscar um prego clandestino numa área suspeita da cidade. Aqui o dado negativo é sair de um registro fotográfico 'crisp', bem definido, com um invejável contraste de pretos e brancos, para outro completamente diverso: ligeiramente desfocado e com intervalos cromáticos diluídos na escala de cinzas, de modo que os pretos e os brancos não ressaltem tanto quanto na sequência anterior. Essa irregularidade na fotografia dos filmes em preto e branco está longe de ser um predicado de Burnett Guffey. Mas o quanto menos ela ocorre, mais o filme impõem-se como um valor regular e íntegro. Pois não parece que a irregularidade haja sido premeditada para ressaltar a ambiência suspeita do bairro onde se encontram os pregos.

A maneira atabalhoada com que Lucy sai da casa de penhores não é apenas o susto de perder a hora com o chantagista, como também o desejo de se ver livre daquela ambiência sórdida. Se não alertada pelo avalista, ela teria esquecido o recibo. A vizinhança com marinheiros, soldados, prostitutas e gente má encarada se vê de passagem. E de passagem ao estilo Ophüls. Ou seja, com Lucy em segundo plano de automóveis, passantes, balcões, quiosques, carrinhos e stands de venda. De chapéu e sob um casaco de peles, ela assoma excessivamente elegante ao longo das ruas.

Numa brilhante inversão de papéis, a dona de casa confessa a um chantagista --- que, aliás, já desistira da chantagem --- o que sabe sobre o crime. O chantagista é dotado de um humanismo pouco provável, mesmo que estivesse apaixonado pela chantageada (presumivelmente por entrevê-la em parte como mãe substituta).

Há uma paixão por interpor um objeto entre a câmera e a figura. Isso responde pelo aprofundamento de campo, e a tentativa de alicerçar o trompe l'oeil, a terceira dimensão. Isso é tão importante e recorrente em Ophüls, que ele interpõe entre a câmera e a figura de Martin, o chantagista, a tela que pende do chapéu de Lucy, a chantageada. Esta tela agora também encobre parcialmente o rosto do chantagista, envolvendo-o. Isso significa o quê? Que eles estão já parcialmente do mesmo lado, envoltos na mesma ideia. Que deixaram de ser adversários para tornarem-se cúmplices.

As passagens de sequência dão-se em fusão, de acordo com a pontuação editiva da época. Mas aos poucos seguem fundindo as intenções opostas de Martin e Lucy.

Ao retornar à casa, estressadíssima, Lucy é informada por Sybil que um tal Nagel lhe espera no trapiche. Ela antes entra em casa e tranquiliza as coisas: concede um dólar a David, acalma o sogro e incita Bea a ir ao cinema junto com o irmão e os amigos. A tudo Sybill (Williams) testemunha. Ela é das personagens mais importantes da trama. O fato de sequer receber crédito nas cartelas do filme ou no verbete da Wikipedia em inglês no ano de 2017, é puro atestado de racismo e misoginia. Acontece.

É claro que o diálogo entre Martin e Lucy ao final é completamente imponderável. Martin faz um mea culpa. Recorda que a mãe desejava que ele fosse padre. Lucy escuta comovida, lágrimas nos olhos. Eles se dão as mãos na penumbra. Ela de alguma forma também está fascinada por Martin. (Mas… é casada). Depois disso ainda se dá a divertida cena em que Martin sai guiando feito um louco com o cadáver de Nagel no banco do carona. Tenta escapar para não incriminar Lucy (e Bea). Eh seguido, porém, por Lucy e Sybil munidas de bandagens, esparadrapos e muito mercúrio cromo. Eis uma das perseguições de carro mais insólitas e cômicas da história do cinema.

Eis alguns elementos que fazem deste filme, aparentemente pequeno e desimportante, um verdadeiro clássico.

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