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"Não importa, meu bem"


Conversa#42 - Reclassificando Clássicos [1]

Out of the Past (Jacques Tourneur, Estados Unidos, 1947 - cin. Nicholas Musuraca)

O modo como Jeff Bailey (Robert Mitchum) e Joe Stefanos (Paul Valentine) alternam sucessivamente para ocupar o lado esquerdo do quadro revela que ambos possuem informações desconhecidas do outro. Esse balé, quase imperceptível ao olho menos adestrado às convenções de movimentação e coreografia no cinema clássico, só indica --- em sua perspicaz transparência --- uma única coisa: distância. Isto é, indica que Bailey e Stefanos estiveram próximos um do outro, mas no passado. E também que passou-se algum tempo até que se reunissem de novo, em frente ao posto de gasolina de propriedade do primeiro.

A partir do passado. Desde o passado.

Eles que tinham uma história em comum no passado remoto, experimentaram nesse ínterim --- até nesse naco de passado recente --- todo um lapso de história "incomum". Stefanos não está tão interessado nessa história incomum tanto quanto em restabelecer o vínculo do passado remoto. Bailey guarda uma posição antípoda. Além disso, por sua caracterização --- o sobretudo preto, o fedora --- Stefanos assoma como a figura de um mau pressagiador, um anjo negro. Assim se restabelece o contato de Bailey com um passado que ele teria preferido esquecer, mas do qual também não faz muito esforço para escapar. A apatia de Bailey não conta entre os motivos menores deste noir arquetípico. E de algum modo nos remete para a fatalidade e o existencialismo de The Killers (Robert Siodmak, 1946).

De acordo com convenções de pontuação (editiva) da época, as transições de sequência se dão mediante fusões. É o que ocorre na conversa entre Bailey e Stefanos no posto de gasolina e na passagem do primeiro para apanhar a namorada, Anne Miller (Virginia Huston), na casa dos pais, à noite.

Quando desce do carro, Bailey já está devidamente paramentado à Jeff Markham, seu verdadeiro nome no passado. Ou seja, exatamente como Stefanos, ele se envolve numa capa de chuva, e traz sobre a cabeça o indefectível fedora. [Anos depois esse mesmo fedora será um coadjuvante de destaque no Miller's Crossing (1991) dos Coen]. Quando Anne sai de casa ouve-se a voz apreensiva da mãe em fora de campo. Essa voz protesta contra o envolvimento da filha com um "forasteiro". Alguém que não é "do pedaço", de quem não se tem muita referência. Anne desculpa-se com Jeff pela afronta da mãe. Mas, ao se encontrarem à saída de casa, recurso efetivo é conversarem um pouco, cada qual do seu lado da cerca. Obviamente a cerca demarca: são e estão em mundos distintos, apesar de aparentemente próximos, apesar de tocarem as mãos sobre a cerca: Pertencem a universos disjuntos, apesar da aparente proximidade. E disjunção, vinda do passado logo irá recobrar sua fatura.

A expressão apreensiva de Anne enquanto aguarda as revelações de Jeff irão parecer tão inúteis diante da carga de potência irreversível do passado. Mas quando se vê isso pela primeira vez, é ainda impossível dimensionar a nugacidade dessa apreensão. Sua imponderabilidade:

Na realidade, quase até a metade desse noir, o que transcorre no filme é apenas o que se passa naquele carro durante breve jornada para o norte, ao longo da fronteira interior da Califórnia. A que margeia as exuberantes florestas enroscadas nas 'sierras' que os Estados Unidos tomaram do México. E o que acontece aí não vai além do relato de Jeff Bailey a Ann Miller sobre o que viveu nos últimos três anos e meio. É, portanto, apenas uma das visões do passado. É parcial, uma vez que não temos acesso a outras visões. Ao lado de lá da história. Aos relatos de Kathie Moffat (Jane Greer) e/ou Whit Sterling (Kirk Douglas). Ainda assim, tudo que Jeff tem para contar a Ann é formidável e verdadeiramente estarrecedor. É o puro fogo que acende tantos e tantos cigarros neste filme inflamável. [Numa boutade, bastante citada, Mitchum diz em certa entrevista: “Hell, we didn’t know what film noir was in those days. We were just making movies. Cary Grant and all the big stars got all the lights. We lit our sets with cigarette butts.”]:

A sequência seguinte trata da contratação de Jeff Bailey (Mitchum) por Whit Sterling (Douglas). A ênfase é na impenetrabilidade e concisão de Bailey. Sterling entende que Bailey reúne os dois requisitos mais em demanda: inteligência e honestidade. Aparentemente seria o investigador frio. Analítico. Aquele que não se deixaria envolver pelos charmes de Kathie (Jane Greer). Como se isso fosse possível. O mais admirável nessa cena da contratação é que de algum modo todos os outros três homens na sala exaltam-se em um ou outro momento. Expõem-se. Mas Jeff permanece impassível, não arreda pé da tal impenetrabilidade. Ninguém sabe com quem e onde estão seus sentimentos, seus pensamentos, sua aprovação. Isso fascina Sterling, o contratador. Ele sabe que precisa ter sob suas ordens um sujeito implacável e frio. Supostamente 'imune' aos charmes de uma mulher. A cena é admiravelmente moldada à Hemingway. Tudo insinuado. Nada dito.

É de reparar que a mudança para a sequência seguinte, ao invés da fusão dá-se por meio de um close. A cena anterior também não é um fade, mas uma porta de elevador fechando. E, então, o close consiste num trumpetista alcançado notas tiples à introdução de um tema jazzístico, no que a câmera executa uma pan em chicotada para a esquerda, e nos revela um amplo salão de dança onde casais negros --- todos muito elegantes --- se divertem. Um maitre distinto, com um cravo na lapela, conduz Jeff até a mesa de um casal, e o introduz. A mulher havia sido criada de Kathie, e naturalmente ele veio em busca de alguma informação sobre o paradeiro da ex-patroa. Toda essa pontuação feita por objetos e circunstâncias fazendo as vezes de efeitos visuais, da pontuação tradicional, testemunha a extrema acuidade visual de Tourneur, seu extremado senso de cinematicidade. Do específico ao cinema:

A empregada aponta a Flórida como provável destino. Mas na verdade era a Cidade do México, como concluiu Bailey em suas inquirições. Os próximos planos repassam uma visão de uma cidade extremamente moderna e civilizada: é a capital do México em tomada aérea, vista a partir de sua artéria principal, o Passeo de la Reforma, onde situa-se a elegante coluna de El ángel de la independencia. Poucas vezes a América Latina assomou mais civilizada em um filme estadunidense. (Em época de guerra, necessário era cultivar a tal política da boa vizinhança).

Mas Jeff não se demora na Cidade do México, logo está em Acapulco, a espera de Kathie em uma café, o La Mar Azul. (Significativamente o café situa-se defronte a uma sala de cinema, de onde vaza parte do ruído que possível ouvir enquanto se toma um drinque.) Não tarda e se dá o "and then I saw her coming out of the sun. And I knew I wouldn't care about the forty grand":

O contato inicial tem a ver com sentir-se em casa. Jeff informa Kathie que é a primeira vez em quinze dias que conversa com alguém que não esteja lhe querendo vender algp:

"Maybe you wanna go home" --- ela diz

"Maybe that's what I'm here" --- ele diz.

Ambas as falas tem algo de emblemático em seu paralelismo. Especialmente numa época em que os Estados Unidos não pareciam tão acolhedores: crise econômica depois da guerra, semi-colapso da indústria cinematográfica, e, sobretudo, o crescente clima de Guerra Fria, polarização ideológica e caça às bruxas que irá culminar no macartismo. Portanto, sem exageros posteriores, o que se fala neste trecho de Out of the Past traz amplas ressonâncias históricas. Ainda que na lógica da trama não seja bem assim, pois quando se deu esse diálogo, a rigor, em 1943, o país estava em pleno esforço de guerra e, portanto, unificado, expandindo-se economicamente e capitalizando em cima do desastre que abateu-se sobre a Europa. Porém o filme foi rodado em 1947, um momento diverso do anterior.

A fala de Jeff transcende tudo isso. Ela quer dizer mais: estar em casa é estar ao lado de quem se ama. Ponto. No íntimo, a impassibilidade de Jeff Bailey --- ou Jeff Markham, conforme a época no filme --- esconde um espírito profundamente romântico e sentimental, ao modo dos heróis de Scott Fitzgerald e Hemingway. Ao modo do Gatsby (1925) ou do Jake Barnes de O Sol Também se Levanta (1926):

Um terço da astúcia narrativa deste noir reside nas réplicas. Difícil pensar em outro filme do estilo que tenha diálogos tão percucientes. Talvez The Big Sleep (Howard Hawks, 1946) ou, em menor grau, Double Indemnity (Billy Wilder, 1944). Os outros dois terços vêm pela impecável fotografia de Musuraca bem como pela destra invisibilidade de Jacques Tourneur, um gigante. Um dos diretores de senso visual mais aguçado. (Parece um tanto improvável que Tourneur fosse tão simplório quanto alguns atores, a exemplo de Jane Greer, nos querem fazer crer). Mas voltando aos diálogos, o convite de Kathie a Jeff passa por troçar com a oferta de um guia mexicano e bonachão para conhecer os encantos de Acapulco:

"I'm a much better guide than José Rodriguez. Wouldn't you try me"?

Aqui começa a perdição do sujeito, que irá culminar com a frase mais célebre do filme. No ponto em que Kathie nega que os 40.000 dólares foram afanados por ela:

"Baby, I don't care". E que ser humano preocupa-se com um "detalhe" desses, que ser humano se importaria com isso se segue verdadeiramente apaixonado? A desgraça está posta à mesa na forma de futuro. Mas antes pelo menos eles viveram alguns meses de uma paixão avassaladora.

Tudo isso é apenas uma introdução a um filme que demandaria muitas mais camadas de aproximação analíticas, sobrepostas. Algumas até distanciando-se do que tocamos com o olho na imagem. Sem dúvida, uma das mais estimulantes: a questão do forasteiro. Do migrante. Do trânsfuga. Do viver sem ter bem onde reclinar a cabeça. Ou de recliná-la em terra estrangeira. Reparando com óculos presbíopes, é a própria questão central que vivemos nas sociedades de capitalismo tardio: a do imigrante. A do que veio para fazer o que ninguém mais quer fazer: o trabalho sujo. Veio para ser patinho feio, o desprezado.

Kathie Moffat, a femme fatale por excelência do universo noir, ainda concede alguns meses de felicidade ao seu zangão antes de cortar suas asas para sempre. Nesse ínterim, uma pilha de cadáveres se acumula. E há mais este momento a consagrar a destreza de Daniel Mainwaring --- com o luxuoso auxílio de uma equipe que contava com episódicas contribuições de James M. Cain e Frank Fenton --- ao roteirizar seu próprio romance. [Mainwaring assinava com pseudônimo, porque estava na Blacklist]. Kathie e Jeff acabam de se encontrar, entre barcos e redes de pesca, sob o luar de Acapulco:

"I didn't know you were so little" --- diz ele.

"I'm taller than Napoleon".

"You're prettier too".

Ainda há menos de meio filme quando Anne deixa Jeff no portão da mansão de Whit, em Lake Tahoe. É o instante em que após o relato de Jeff, o filme torna ao presente 'out of the past'. Até hoje não se sabe se, ao concordar com Ann, "que tudo é passado, deve ser deixado para trás", Jeff estava a falar a verdade. Mas quando se volta para ela no carro, diante do portão, ele parece de alguma forma despedir-se. Dizer adeus não só a Anne, mas a um futuro que poderia ter sido mais tranquilo, feliz, compensador. Mais justo. Não fosse o passado.

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