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Endemias por toda parte

Conversa #45 - Reclassificando Clássicos [4]

Hud (Martin Ritt, Estados Unidos, 1963 - Dir. de Fotografia de James Wong Howe)

Havia muita mágoa existencial, gesto áspero e palavra amarga na boca da geração que se tornou adulta nos anos 1950. Atitude errática e um desejo legítimo de auto-arruinar-se. A si e ao mundo.

Mas era essa ainda uma conduta que atava o indivíduo à comunidade. Em meio a tanto azedume. Também por causa desse azedume. E o confronto, o ceticismo, a amargura guardavam então uma ânsia de mudança, no fundo. (Ambos, ceticismo e desejo de mudança não existiam em separado). A desesperançada esperança de que um dia o mundo não amanhecesse tão sórdido estava no ar. Essa ânsia liquidou-se. Ou melhor, foi liquidada por todas as ratoeiras racionadas por ficções pós-modernas, pós-utópicas e milimetricamente acolhidas, toleradas e exasperadas pelo mercado. Essas ficções e atitudes do presente, em sua pulsão "compensatória", estão para aqueles sentimentos contestatórios, aflorados nos anos 1950 e exasperados nos '60, como a caridade assistencial está para o amor (charitas).

Hud (Paul Newman) é um desses rebeldes amargos. Sua rebeldia parece ter ainda menos causa que a do atormentado James Dean de Rebel Without a Cause (1955). Embora com suas pulsões violentas e misóginas, ele surja bem menos "desprotegido". É de fato preciso estar vivendo uma época muito convulsa para que essa personagem, com seu sadismo e alimentada auto-absorção, bordejando a psicopatia --- mas também com uma complexidade como poucas vezes se vê nas imagens --- seja saudado como herói de um tempo.

É evidente que um dos temas de Hud é o conflito geracional. Há três gerações vivendo sob o mesmo teto, uma casa de fazenda no Texas, cercada por planícies a perder de vista. E, em determinado momento, a primeira geração (avô) e a segunda (tio) lutam para conquistar a alma da terceira (neto). É assim que se movimentam respectivamente Homer Bannon (Melvyn Douglas), Hud Bannon (Paul Newman) e Lonnie Bannon (Brandon deWilde), todos os três sob o olhar e os cuidados de Alma Brown (Patricia Neal). Essa criada, que demonstra particular apreço pelo caçula da família, órfão dos pais, faz eventualmente as vezes de filha, cônjuge e mãe. Embora acabe sendo mais mãe.

Por sua vez, a trama não parece comportar muitos acontecimentos: Hud vive na farra, quando não está trabalhando. Namora metade das mulheres solteiras, e metade das casadas da cidadezinha mais próxima. Homer é um senhor de idade e muitos princípios. Tolera o filho, a quem atribui parcialmente a morte acidental de seu primogênito -- o pai de Lonnie -- mas não suporta sua total falta de escrúpulos. Já Lonnie inicialmente vê o tio como modelo e ídolo. Mas ao longo do tempo, ao observar o avô, começa a questionar até que ponto Hud age com sensatez e uma mínima dose de altruísmo.

Este sacrificar-se pelos demais está no centro da conversa em Hud. Inclusive metaforicamente. Pois daí resulta a cena mais forte do filme: o extermínio do rebanho dos Bannon, infectado pela febre aftosa. Ao longo de todo o filme se fica em suspenso, à espera do veredito do veterinário e das autoridades sanitárias. E a trama começa justamente com Lonnie indo à casa de uma das amantes de Hud, convocar este a mando do avô, para que se investigue a condição de uma rês morta há pouco.

Ao chegar no local, Hud é da opinião de que não se comunique o ocorrido às autoridades sanitárias. Homer tem uma visão oposta, para variar. E até parece que Homer convocou Hud justamente para assegurar-se de que está tomando a decisão correta ao perceber qual seria a firme disposição do filho. Este irrita-se e desdenha aos brados da resolução do pai. Sua réplica parece falar por uma geração. Ou haver sido escrita por Allen Ginsberg:

"This whole country is run on epidemics. Where have you been? Epidemics of big business price fixing. Crooked TV shows. Income-tax finagling. Souped up expensive accounts. How many honest man you know?"

E assim eles vão levando seu cotidiano de trabalho e horas de folga na fazenda sob os cuidados de Alma. Uma mulher madura, passada na casca do alho, extremamente bela, e soberbamente interpretada por Patricia Neal, Alma em nenhum momento degrada-se ou perde sua dignidade: "Já rodei muito por este país atrás do lugar certo e das pessoas certas. Assim que quando me detivesse, não fosse necessário sair de novo. Parece que não deu muito certo". É o que ela diz, ao final, antes de tomar o ônibus e deixar a cidadezinha e os dois Bannon sobreviventes.

De longe, sua relação mais tensa é com Hud --- ou seja, é a do "cônjuge". E eles até podiam ter chegado a uma solução de romance. É o que a própria Alma insinua, pois em algum momento dá sinais de sentir-se atraída por Hud. Porém a abordagem deste é tão brusca, grosseira, que ela sublinha: "I've been asked with a more finesse in my time". Constrangido pela presença de espírito da criada, Hud afasta-se agastado e diz que lhe vai trazer um vidro de perfume da mercearia, da próxima vez. Ao que ela ironiza: "que tal algumas contas coloridas e missangas"?

Há um misto de altivez e certo componente vulgar que tornam a figura dessa mulher adulta, madura --- como nem sempre se vê nos filmes, e cuja encarnação subsequente poderia ser Gena Rowlands --- absolutamente irresistível. Ela inclusive ganhou um Óscar de Melhor Atriz por esta performance, mesmo que no filme seja uma coadjuvante. Coadjuvante de luxo é verdade, mas aqui seria difícil emparelhar com o protagonismo de Hud, a personagem. Ainda que mesmo o garoto Lonnie e o venerável Homer apareçam mais na trama do que ela --- embora nem sempre sejam mais determinantes.

A fotografia de James Wong Howe para Hud simplesmente não conhece rival nos tempos do preto e branco. Nunca ninguém fotografou assim, com matizes pretos tão fechados e sedosos, unindo ao mesmo tempo textura e definição, aliados a um senso de composição excepcional. Plano após plano não há bola fora. Isso embora seu estilo não seja o de passear o tempo inteiro com a câmera, como se a serviço de um Ophüls. Percebe-se um artesão com liberdade para dispor de sua mestria. Pode-se dizer que junto com a paisagem que apresenta, a fotografia de Wong Howe é mais uma personagem neste filme.

Em geral, entre os grandes mestres da cinematografia em preto e branco, da fase intermediária --- Nicholas Musuraca, Gregg Toland, Burnett Guffey, John Alton, Rudolph Maté, Norbert Brodine, William Daniels, Joseph MacDonald, Milton Krasner, Stanley Cortez, Robert Burks, Georges Périnal, Gabriel Figueroa, Boris Kaufman, Haskell Wexler, entre tantos outros --- mesmo em seus melhores filmes, cá e lá há um plano menos regular, mais defectivo. Seja por ferir o senso geral de composição, seja por destoar do padrão de iluminação, seja por estar ligeiramente em desfoque diante do foco preciso da média, seja por exceder o intervalo de f-stops pré-acordado ou ainda por extraviar-se um tanto na escala de cinzas utilizada: mais contrastada entre preto e branco, mais matizada em cinzas, mais puxada para verde, etc.

Em Hud, vive-se em preto e branco. Respira-se e transpira-se em preto e branco. E bem melhor que na quase totalidade dos grandes clássicos em cores.

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