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Em forma de farsa


Conversa #98 -Ano 3 - Reclassificando Clássicos [33]

The Night of the Iguana (John Huston, Estados Unidos, 1964 - cin. Gabriel Figueroa)

Entre outras coisas, os ajudantes da pousada gerida por Maxine Faulk (Ava Gardner) dão a medida da farsa com que os estadunidenses veem a América Latina. Os distintos ajudantes, dois mulatos atléticos e robustos, passam o tempo todo tocando maracas e bailando, mesmo quando transportam a bagagem dos hóspedes ou envolvem-se numa briga. O calor é insuportável, tudo parece cair aos pedaços, o ônibus é um caco mecânico ambulante. Tinha de ser numa terra assim que um reverendo decaído opta por refugiar-se. Mas também tinha de ser numa terra assim onde Tennessee Williams optou por ambientar sua mais rematada farsa. Porque a realidade no México, na América Latina, é muito mais grotesca que em suas comédias ambientadas nos Estados Unidos semi-tropical: o Deep South.

Eis o panorama. Podemos nos estender mais sobre a personagem. Por se tratar de uma farsa, vemos Richard Burton em um de seus papéis mais caricatos ao fazer esse reverendo alcoólatra e tarado, cercado de um bando de mulheres de meia-idade. Embora três delas não sejam tão de meia-idade assim, e bastante atraentes. As condições, então, estão postas, uma vez que bebida não falta na pousada de Maxine, e, entre as três candidatas à cama do ex-reverendo, o Dr. T. Lawrence Shannon, há que se escolher entre a juventude, a sensualidade e a cultura. Façam as apostas de quem o reverendo levará para a cama, numa noite em que por uma conjunção de astros teve essas opções.

Não será o primeiro nem o último filme de Huston rodado no México. Tampouco o melhor --- para esse posto há seu fino estudo sobre o alcoolismo e a condição humana, Under the Volcano, baseado no romance autobiográfico de Malcom Lowry, rodado 2O anos depois. Mas a Noite do Iguana traz bons motivos e tropos. O suficiente para assegurar boa diversão, mesmo em seu registro de rematada farsa: o ciúme de mulheres mais velhas por mulheres mais novas no esplendor de seu apelo físico; o ciúme de mulheres menos charmosas por mulheres mais charmosas, no auge de seu charme; o ciúme de mulheres menos inteligentes diante de mulheres mais inteligentes. E tudo isso, que pode por em cheque expresso a tal sororidade feminina.

Não é um filme muito em voga com as tendências comportamentais do momento, tão decididamente pró-feministas. Muito menos tudo que foi escrito por Tennessee Williams pode ser sancionado pelos Estudos Culturais e o politicamente correto, a despeito de o autor ser gay. É evidente que por trás do escracho com o México e com a circunstância de um bando de castas velhotas estadunidenses numa excursão de férias bizarra, em que depara-se com um universo que não consideram "o mundo civilizado", embute-se também um grau de misoginia exemplar. Consolidada.

Iguanas são alegorias dos perigos da sexualidade. Eles são o topo do iceberg de um ambiente carregado de signos sensuais, outros e perigosos: o México. Uma terra primitiva, quente e bárbara. Cercada pela floresta tropical, paralisada letargicamente pelo calor, e em permanente estado de faz de conta. Uma má-formação congênita. Uma anomia. Uma realidade que não deve ser levada a sério. Pela sua rudeza. Pelo primitivismo. Pela Sordidez de seus costumes. Mesmo que, muito ironicamente, o indício mais glorioso de modernidade e precisão neste filme nos seja brindado por um mexicano: a cinematografia, numa espécie de antecipação da excelência fotográfica dos mexicanos em Hollywood no presente.

Já o ex-reverendo, Shannon (Burton) não passa de uma pálida caricatura de humano dentro das convenções abertamente naturalistas de Tennessee Williams. Mas também não deixa de ser sintomático que após seu ataque de nervos, Shannon consiga desinteressar simultaneamente todas as mulheres que lhe rondam. É que seres humanos parecem não tolerar seres humanos sem senso de humor. E esta é a praga que acompanha o ex-pregador. Ele pode assomar como um desgraçado bastante engraçado aos nossos olhos, quando no fim das contas não passa de alguém doente.

As sequências em que Shannon caminha sobre vidros ou a que ele, com a ajuda de Turner socorre o avô desta, que havia sofrido um tombo, são puro teatro. E só não são teatro filmado pela perícia da câmera de Gabriel Figueroa, que ao propor closes na primeira ou postar-se tão rente ao assoalho, na última, nos faz lembrar que estamos assistindo a um filme.

Uma cena particularmente notável é a que Maxine (Ava Gardner) vai à cozinha da pousada preparar o almoço dos hóspedes. Ela recebe o auxílio de Hannah Jelkes (Lana Turner), a patrícia de Nantucket, que viaja pelo mundo de forma meio malandra junto com seu avô (Cyril Delevanti), um poeta idoso que recita versinhos por uns trocados em mesas de restaurante. Em seu inglês arrevesado, Hannah (Lana Turner) confessa a outra ter sentido certa animosidade do grupo de mulheres guiadas por Shannon (Burton) contra o próprio reverendo:

---Specially from Miss Fellowes.

Ao dizer isso ela dá um golpe seguro na tábua de carne que decepa a cabeça de um peixe. Maxine delicia-se com a análise da outra. E lhe diz em meio a risadas que ela é uma vigarista de mão cheia, e certa classe, embora de momento sem um tostão.

O diálogo entre essas duas personagens, que desce aos segredos de alcova, conta entre o que há de mais precioso nessa farsa espirituosa. Não apenas pelo exotismo das personagens. Muito mais pelo fato de serem representadas por duas divas do cinema já no outono de suas carreiras, e, portanto, com toda experiência da mulher de quarenta anos e mais certa sensualidade inercial e magnética. É o que se lê de modo mais aparente no rosto de Ava Gardner. De modo mais sutil no de Lana Turner. Elas, no fim das contas, comandam o show. E não é preciso ser uma analista para saber o que elas decepam à limpeza do peixe.

Sim, é para rir, mas também para perceber o modo como países e mulheres eram tratados por escritores americanos (straights ou gays) em meados do século passado: joguetes que eventualmente até podem assumir os fios de controle dos títeres. Mas que na maior parte do tempo não passam de matéria prima para o titereiro.

No fundo, o motivo é o mesmo explorado por Don Siegel nove anos depois em The Beguiled (1971): muitas mulheres disputando um único homem. Aliás, o motivo recorre no cinema. E foi recentemente abordado por Sofia Coppola justamente num remake do filme de Siegel.

A inversão deste motivo é o Jules e Jim, um filme prismático, que anuncia novos tempos para o cinema. O que também quer dizer: novos tempos para sexualidade.

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