Por que não, mais?
[P.S. Postagem originalmente publicada em 18 de Agosto de 2017 - e que por equívoco veio parar nesta data]
Conversa #47 - Reclassificando Clássicos [6]
Panic in the Streets (Elia Kazan, 1950 - cin. Joseph MacDonald)
Richard Widmark está entre os heróis menos confiáveis. Há uma neurastenia em seu rosto que faz supor alguém sujeito a explodir a qualquer momento. Não é para lhe ser dado um cargo de decisões difíceis como o de um oficial médico do Serviço Nacional de Saúde. Alguém que tem de tomar decisões para ontem a respeito de temíveis endemias que eventualmente podem chegar do cais e ceifar milhares de vidas. Mas é como o vemos neste noir atípico, em que a polícia de New Orleans junta-se a um médico abnegado (Widmark) para salvar toda uma população ameaçada pela peste bubônica trazida por um marinheiro embarcado em Oran, na Argélia, num navio de bandeira estrangeira. A única pista que o médico sanitarista tem do marinheiro é a de que ele é de origem eslava e gosta de kebab. E então segue visitando os restaurantes gregos no centro de New Orleans, em busca de um vestígio.
Que a peste venha de fora é mais um sintoma da América dividida, problemática e caçadora de bruxas dos anos 1950. Que o marinheiro seja de origem eslava, algo que traz alguma entrelinha nesses tempos de Guerra Fria. E, evidente, que a peste venha de Oran, justamente a cidade de Camus...Mas, quem sabe, isso não seja apenas especulações de um espectador sete décadas adiante, no futuro.
O esforço feito pelo delegado Tom Warren (Paul Thomas) junto com o Dr. Clint Reed (Widmark) não é só titânico, chega a ser tirânico. Num controverso passo da trama, o delegado dá voz de prisão a um jornalista inocente, que conseguiu deduzir, por esforço próprio, que algo como uma ameaça de epidemia encontrava-se em curso. Questionados pelo próprio Dr. Reed, Warren e seus subordinados fazem pouco caso:
---Se a gente fosse se preocupar em silenciar as bravatas de um jornalista desse tipo, já era pra ter encerrado carreira faz tempo -- dizem. Não deixa de ser uma indicação de como funcionava a liberdade de imprensa na maior democracia do planeta em meados do século passado.
Mas até isso é depois desfeito pelo próprio prefeito, que não só liberta o jornalista, pede desculpas formais e adverte os subordinados contra a reincidência de casos assim. Ou seja, há aqui uma confiança no bom-senso e na honradez das autoridades como não é de uso nos noirs. Embora um caso assim fosse gerar um verdadeiro --- e até certo ponto justificável --- escândalo hoje em dia.
De outro modo, o filme foi gravado predominantemente fora dos estúdios. Tem uma fotografia crisp, sem difusão, que lhe empresta um aspecto bastante moderno. Os tons de preto são densos e sedosos, extremamente bem captados, sem sombra de granulação. A fotografia está a cargo de Joseph MacDonald e figura, sem hesitação, entre as melhores já conseguidas para o universo noir. Entre os espaços de gravação, encontra-se algumas idas ao cais. A mesma ambiência portuária. Os mesmos ancoradouros, as mesmas docas, armazéns e trapiches vistos depois em On the Waterfront, transpostas então para a realidade ampliada de New Jersey. Com a ressalva de que aqui, tudo se passa em New Orleans, à época, a maior metrópole do Deep South.
O elenco está bem escalado, as locações bem escolhidas, a fotografia acima da média, a trilha musical, ok. Quando checado, tudo funciona bem, em condições de temperatura e pressão neste noir, menos trama. É que o enredo é um tanto mecânico. De algum modo está embutido, talvez na determinação ferrenha do Dr. Reed, que depois contamina como uma praga o policial Warren: eles vão conseguir deter a epidemia, custe o que custar. Falta criar condições para a dúvida e a ameaça aos olhos do espectador. E isso quebra com um elemento-chave em se tratando do estilo noir: a dualidade das personagens.
Os dois protagonistas --- ao contrário dos detetives cínicos, moralmente abatidos, assombrados por passados não muito lisonjeiros, devastados por vicíos e alguma eventual venalidade, ludibriados por 'femmes fatales' ou cercados de informantes e amizades suspeitas --- são dois cidadãos de bem: um pai de família zeloso, e um viúvo obcecado por seu próprio trabalho. Quando muito há uma leve insinuação de crise conjugal na casa do Dr. Reed. Mas desde o início, pressente-se que essa aresta será solvida em três tempos pela esposa bela, recatada e do lar. A que recebe o marido de madrugada com palavras cuidadosas, um bule de café recém coado e a notícia de um novo rebento. Eles têm problemas com dinheiro. Mas trata-se menos de dívidas do que da potencialidade de ganhá-lo mais. (Ou seja, a ética protestante). Há mais pequenas dívidas que grandes dúvidas. Além disso, a esposa sabe consolá-lo:
---Você faz exatamente o que sonhava fazer quando ainda estava na residência médica: quantos têm esse privilégio?
Até que se pode fazer algo desse zelo e dessa obsessão, quando se mostra ou sugere mais de perto o que está por detrás de um casal assim. Quando se põe uma lupa sobre eles, o cotidiano, o dia a dia. Mas neste Pânico nas Ruas há apenas eles mesmos. E quase nenhum tempo para tempos mortos. Para o tédio que rói a vida de um casal.
Além disso, não se pode descartar um dado: o papel da esposa - conciliatória, ponderada, contemporizadora, em amparo do marido e da carreira deste - iria suscitar grunhidos de insatisfação entre feministas identitárias de terceira geração.
Ainda assim, em meio a uma tessitura previsível, ocorrem momentos luminosos. Epifanias. Elas resultam da tendência do filme ao documental. (E da tendência de Kazan ao humanismo). Como quando uma jovem entra numa espelunca a cata do Dr. Reed. Ele está sentado bem ao fundo, no balcão. Para chegar até ele, a jovem tem de passar esgueirando-se por trás dos outros clientes. O ambiente é nauseabundo e o papel de parede há muito descasca. Mas quando então a câmera põe o rosto dos clientes em campo, se tem a verdadeira dimensão de vida. São rostos de gente velha antes do tempo, com traços esculpidos a canivete, onde está inscrita a dura luta pela sobrevivência na precariedade e no abandono dos cortiços de New Orleans.
O destaque vai para a presença de um Jack Palance na condição de Blackie, um pequeno gângster do subúrbio. É sua estreia no cinema e ele ainda é creditado como Walter Jack Palance. Mas visualmente, algumas das melhores cenas o propõem altíssimo, um procaz riso de lábio, diante de um de seus esbirros: certo anão jornaleiro, que o venera, como o assistente ao cientista maluco. E despede-se dele sempre com um:
---Deus lhe abençoe, Blackie.
Durante uma perseguição policial há essa cena em que Blackie (Palance) e um de seus comparsas, Raymond Fitch (Zero Mostel), atravessam às carreiras um vasto armazém portuário. A polícia está no encalço, e eles, para encurtar caminho ou acrescentar efeito, têm de descer por uma espécie de escorregador, por onde são deslizadas sacas de trigo. Fitch, apesar de mais gordo, o faz com perfeita desenvoltura. Já Palance, o valentão, mete-se no escorregador visivelmente desajeitado e cauteloso.
Mas é Blackie, em outro momento, o responsável pela cena mais próxima à realidade que esse filme bem comportado é capaz de nos brindar. E se pode pensar com os botões: por que Jack Palance não fez mais noirs?
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