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O anjo da história

Conversa #46 - Reclassificando Clássicos [5]

Baby Face (Otto Preminger, Estados Unidos, 1953 - cin. Harry Stradling Sr.)

Os olhos profundos e indiferentes de Jean Simmons são o sumário deste noir classudo, riscado a lápis por Otto Preminger. É um desses filmes europeus feitos na América. E com um tema musical modelar, assinado por Dimitri Tiomkin. Mas dizer que são os olhos de Miss Simmons ainda é um equívoco, porque há uma diferença entre o olho e o olhar. E é bem o olhar, o olhar de doida que essa atriz incorpora como uma dádiva, e que está no centro deste pesadelo.

O filme naturalmente vem de um tempo em que o cinema está obcecado com Freud e a psicanálise. Em que a psicanálise nunca se sentiu mais apta para desmontar com chave mestra todos os segredos da alma humana. Neste Angel Face o crime gira em torno do Complexo de Elektra. Ou seja, da paixão que a garota nutre pelo pai, e não chega a superar com o advento da idade adulta. (O correspondente feminino ao --- mais recorrente no cinema e mais caricato na vida real --- Complexo de Édipo).

Uma das cenas mais fortes, portanto, é quando após a morte do pai e o julgamento, ela passeia solitária justamente pelos recantos que dividia com ele: o salão de música, a biblioteca, a sala onde costumavam jogar xadrez. Os revisa como uma viúva. Só depois ela sobe para o apartamento do motorista, ainda ocupado com as coisas de Frank Jessup (Robert Mitchum), com quem mantinha um affair passional e turbulento. Ele já lhe tinha comunicado: irá partir.

Frank vem depois, porque depois se encontra no coração de Diane Tremayne (Jean Simmons). Ele não é mais que uma projeção do pai. Uma espécie de Ersatz. Porque o pai foi o único ser que ela amou. O fato de tê-lo assassinado, mesmo que involuntariamente, jamais será apagado de sua consciência, ainda que seu forte não seja a consciência. Quando ela empenha-se tanto para salvar a pele de Frank, na verdade está empenhando-se apenas em tentar salvar aquele que faz as vezes do pai. E nisso reside a danação de Frank.

A carga de perturbação que segue cada gesto, cada sorriso, cada olhar dessa personagem guarda algo de verdadeiramente funesto. E uma inexorável impressão de tragédia iminente. Seja porque tanta desorientação acabe lastrada pela evidente beleza de Simmons, seja porque há um senso de 'kairós', de oportunidade, para suas destrutivas intervenções que resultam em morte, consumação e exício.

Não à toa, esse noir, nem sempre exaltado por suas qualidades tersas e admirável aspecto --- a cinematografia é de Harry Stradling --- vem a ser um dos filmes americanos favoritos de Jean-Luc Godard. Nele Mitchum é Mitchum: o gigante enigmático, com o olhar semi-velado pelos longos cílios, sempre com um cigarro no canto da boca ou entre os dedos. Fatalista e meio entediado. Mas, aqui --- ao contrário de em Out of the Past ou de The Night of the Hunter --- é Jean Simmons quem rouba a cena.

Uma menção especial vai para Raymonf Greenleaf, ator de tipo, que faz o advogado de Diane, com a desfaçatez e o cinismo típico dos advogados bem sucedidos. A justiça não parece ser deles a melhor amiga.

Ironicamente, ao final, Frank está indo para o México. Justamente seu destino de perdição em Out of the Past, seis anos antes.

Desta vez, nunca chegará lá.

"They'd put in an insane asylum. Do you want that?"

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