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Em dose dupla

Conversa #48 - Reclassificando Clássicos [7]

Double Indemnity (Billy Wilder, Estados Unidos, 1944 - Dir. de Fotografia: John Seitz)

Quando depois de jogar charme para uma ricaça, o vendedor de seguros Walter Neff (Fred MacMurray) torna ao quartel general da companhia, pode-se ver algo raro nas produções da época: o teto do vasto escritório. Esta presença do teto, por mais prosaica que seja, tem uma função. Pelo menos desde Stranger on the Third Floor (1940), Citizen Kane (1941) e um pouco antes: criar certa atmosfera claustrofóbica. Insinuar uma jaula, por maior que seja o espaço, em que as pessoas passam boa parte de suas vidas, aprisionadas, torcendo para tirar a sorte grande na loteria, e danando-se a fazer o que não querem.

Assim é Walter Neff, um vendedor de seguros de algum sucesso. Mas daquele sucesso medíocre, impossível de compensá-lo pelo aborrecimento de trabalhar numa ampla jaula de dois pavimentos -- há um mezanino acima -- cheia de pássaros humanos das mais diversas espécies. Mas todos a vender seguros em série. Seus birôs seguem o mesmo padrão, e não poucos usam a viseira do "clerk", cuja função é a de rebater o foco da luminária e centrar a vista nos documentos a serem examinados.

Walter Neff já passou do estágio de clerk. Ele trabalha em um escritório 'upstairs', junto ao mezanino. Uma sala só sua. Neste mesmo andar, próximo ao escritório de Neff, está o de uma espécie de pássaro raro, que nutre verdadeira devoção pelo que faz. Não se trata, aqui, só de ganhar dinheiro, como Neff, mas de conhecer por dentro um ofício. Seu nome é Keys. Barton Keys (Edward G. Robinson), um ajustador de seguros capaz de achar a agulha no palheiro se houver algum tricotador que a deixou cair casualmente ou de propósito. Sobretudo se tiver sido de propósito.

Keys é um sujeito baixinho, semi-calvo, de amplas bochechas, muita fala e gestos largos. Veste-se à antiga: guarda os charutos num dos bolsos do colete, no outro porta uma verdadeira coleção de canetas tinteiro. Bem poderia ser um ator de tipo num cartoon. Enverga óculos de aros de tartaruga e um relógio de bolso. Tem a mania de matutar em voz alta. Coisa de gente sozinha. Barton é viúvo. Sua sala é guarnecida por velhos arquivos de madeira muito bem zelados, e sobre um deles está depositado um dos primeiros ventiladores fabricados na América:

---You're not smart, Walter, just a little taller --- costuma trocadilhar o homenzinho com o charuto entre os dedos.

É preciso muita imprevidência para desafiar a inteligência de um homem assim, com 26 anos no ramo. Mas um homem louco para levar uma mulher para a cama e fazer fortuna sem muito suor, como Walter Neff, poder ser mais imprevidente que o rato que sai da toca para beber o leite do bichano.

Num suntuoso preto e branco, que, ao invés do contraste brusco --- como no estilo de um Musuraca ou de um John Alton --- segue as gradações da escala de cinzas, puxando tudo para um matiz levemente cerúleo, temos uma das mais ressonantes fotografias do cinema antes da predominância das cores. Pode-se viver num mundo assim. Em branco e preto puxado para um gris anilado. Ou pelo menos crer na sua verossimilhança.

É claro que John Seitz trabalhava com um orçamento desmedidamente maior que a maioria dos seus pares. Impossível imaginar o que fariam John Alton ou Burnett Guffey com tantos recursos. Talvez apenas Musuraca, Kaufman e James Wong Howe tenham tirado melhores efeitos da fotografia em preto e branco do que Seitz em Double Indemnity e This Gun for Hire (1942).

Tudo somado está faltando quem? Claro, está faltando Eva, porque todo um mundo em preto e branco já foi criado, bem como um corretor de seguros babando por ela, (além de um outro que conhece o universo dos seguros como um demiurgo, e com a vantagem de não estar babando por ela). E, no caso, Eva se chama Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck). E, no caso, Eva viu em Walter a possibilidade de evaporar com o marido e apossar-se da fortuna dele. E, no caso, Eva estava inconsciente de que no escritório de Walter trabalhava alguém como Barton Keys. (Walter até comentou o detalhe, mas ela não tinha a dimensão da coisa, não sabia onde estava pisando). E, no caso, por um capricho fotográfico --- a necessidade de rebater a pouca luz para o seu rosto de diva --- Stanwyck enverga suéteres, tailleurs e blusas claras. Às vezes claríssimas.

Phyllis e Walter rapidamente se tornam amantes. E cúmplices: matar o marido dela, em circunstâncias especiais, para ficar com um tipo de seguro raro de ser concedido: a Indenização Dupla do título. Walter, aqui, vai mais pela luxúria. Phyllis, pelo dinheiro. Mas que diferença faz: avareza, luxúria não são pecados capitais da mesma forma? O importante para Phyllis é ter alguém que elimine o marido. Um marido mais velho, insosso, que se compraz em assistir o beisebol pelo rádio. Capaz de passar horas sem trocar palavra. Que apesar de ser um magnata do petróleo reclama do preço de um reles chapéu comprado pela esposa. Quando se tem um marido assim: do que adianta ter uma mansão em estilo espanhol nas encostas de Glendale? Já Walter não quer só a mansão, quer a mansão com Phillys dentro. É apenas uma questão de perspectiva.

De perspectiva? Sim, se repararmos bem, seis anos depois, em Sunset Boulevard, um filme também de Wilder (e igualmente fotografado por Seitz), o defunto conta a história. Neste Double Indemnity, quem conta a história é um pré-defunto. (Mas bem, pré-defunto é todo aquele que um dia nasceu). Melhor dizer que a história é contada por um moribundo. Pois mesmo antes de se tornar um muribundo físico, há algo de uma sordidez moral que o torna podre antes do tempo.

Na primeira vez que Phyllis vai ao apartamento de Walter, e os dois bebem bourbon na penumbra, depois do beijo, não se sabe o que brilha mais: os olhos ou os lábios de Phyllis. E brilhar nessa fotografia penumbrosa de Seitz tem um valor a mais. Muitos VT's publicitários hoje não obteriam tão sensual fulgor numa mulher. Seus olhos e lábios parecem radioativos. Parecem declinar o móvel de quatro letras e quatro pernas: cama. E na penumbra os copos altos com o bourbon e cubos de gelo guardam um erotismo que só pode ser plasmado em preto branco.

A enteada de Phyllis e seu namorado não jogam papel pequeno no caso. (E, aqui, há quase uma troca de casais). Mas há também uma irremediável assimetria nessa troca. E uma vez mais fica exposto o papel de joguete de Walter nas mãos de Phyllis. Esta de fato tem um caso com o ex-namorado da enteada, Nino Zachetti (Byron Barr). Já Walter mantém com Lola Dietrichson (Jean Heather), a enteada de Phyllis, uma relação platônica, que os faz passear pelos vales em torno de Los Angeles, e culmina com sentar-se no alto de uma colina, dominando o Hollywood Bowl, a desfrutar de um concerto da filarmônica, ao ar livre.

As cenas de Phyllis e Walter num supermercado, combinando detalhes do crime aos sussurros, como se estivessem numa catedral, tornaram-se prismáticas. Walter Benjamin teria escrito sobre elas, tivesse sobrevivido à guerra. Nesse ínterim, o homem que escreveu essas cenas, Raymond Chandler, surge brevemente no filme. Como um leitor casual, à espera de ser atendido. Mas que rapidamente observa sua personagem passar no mezanino de uma companhia de seguros, com a mente cheia de planos estúrdios, envolvendo álibis, lavagens de carro, telefonemas, e saltar de um trem em movimento depois de estrangular um homem.

Quase ao final, deitado num divã, com um charuto aceso, Barton Keys, depois de dar tratos à bola, chega a conclusão muito próxima do ocorrido. O problema é que ele mal sabe a quem está a comunicar suas suspeitas. E tudo isso acontece num momento em que o cinema andava de namoro firme com a psicanálise. Uma paixão. Quase tão cega quanto a de Walter por Phyllis.

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