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O crime como ofício e o existencialismo dos rufiões


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Conversa # 49 - Reclassificando os Clássicos [8] The Asphalt Jungle (John Huston, Estados Unidos, 1950 - cin. Harold Rosson)

O uso da figura humana em primeiríssimo plano é o recurso mais eloquente. E essa figura, frequentemente em desfoque, funciona como um re-enquadramento que dispensa um excesso de cortes e reforça as figuras em segundo plano e/ou ao fundo, emprestando a estas um interlocutor. Um interlocutor semi-velado. Um pouco por isso, apesar de seu motivo aparente ser o crime, um modo profissional, sofisticado de praticá-lo, The Asphalt Jungle conta tanto sobre suas personagens que a trama --- aliás, excelente --- acaba ficando num segundo plano diante dessa primeiríssima exposição.

Paradoxalmente essa exposição vem mais de quem se encontra por trás do que daquele que se posta imediatamente diante da câmera, conformando uma moldura humana, porque aqui e habilmente algo é negado. (E se negado, o espectador é quem deve preencher a ausência, é convocado a suprir essa lacuna). O que é negado deliberadamente: a reação de um dos emissores. Ou seja, o contraplano. Por isso, planos onde aparecem apenas uma pessoa são raros. Limitam-se aos estritamente necessários. E mesmo ao início, quando Dix Handley (Sterling Haden), o rufião altíssimo e violento, esgueira-se por uma cidade vaporosa e semi-abandonada, há o espelho dos policiais passando no carro. Espelho que ele tenta evitar, escapando para detrás das colunas. A cidade fervilha. Há uma vaga de crimes abatendo-se sobre ela noite após noite. O filme, então, apesar da profusão de personagens, nos revela muito de cada um mediante essa astúcia. Uma estratégia da recusa. Essa recusa não põe em campo ou negaceia a reação de um dos conversadores. Quando muito a voz assume o lugar do contraplano e lemos a presença do emissor, a constatação de sua existência mesma, no semblante do receptor: estampada na sua reação: fala ou gesto suplementam a presença do primeiro. É por esse intermeio, por essa "refração humana" que os tipos se dão a conhecer: Alonzo D. Emmerich (Louis Calhern), advogado rico, traiçoeiro e degenerado; o Comissário Hardy (John McIntire), chefe de polícia durão e honesto; Dietrich (Barry Kelly), o policial corrupto; Gus Minissi (James Whitmore), o pequeno agiota neurastênico; Dr. Erwin Riedenschneider (Sam Jaffe), cérebro do crime e pedófilo; Louis Ciavacelli (Anthony Caruso), arrombador de cofres e pai dedicado; Angela Finlay (Marilyn Monroe), amante de um figurão mais velho; May Emmerick (Dororthy Tree), esposa doentia, traída e envelhecida precocemente; Doll Conovan (Jean Hagen), namorada de malandro; Maria Ciavelli (Teresa Celli) jovem mãe, dona de casa e esposa amorosa. Para tirar a ideia do papel social pouco protagonista das mulheres de então, basta ler os qualificativos acima. As personagens femininas são sem exceção suplementos sexuais das masculinas: esposas, amantes, namoradas, prostitutas. Não tem vida própria. Sequer um trabalho fora do lar. Huston no entanto, não parece apontar para isso em misoginia. Do contrário. Ou seja, ao sublinhar esse fato, torná-lo evidente e problematizá-lo, indica: algo está errado. Há algo, aqui, a se ter em conta. Embora não seja mediante uma glorificação artificiosa da figura feminina, assumindo um poderio masculino, proposto pela própria sociedade capitalista tardia, que isso vai se justificar ou reparar. (Como se quer, a todo custo, hoje em dia). Em The Asphalt Jungle o existencialismo chega definitivamente ao filme noir. Há um sentido do trágico que se estende mesmo a um patife menor. Um rufião do Kentucky: Dix Handley. Sim, pode ser menor, brigão e caipira, mas tem seus brios --- aliás pressentidos pelo Dr. Riedenschneider. Tem também uma morte trágica, voltando para casa, e desfalecendo na grama, próximo dos belos cavalos, que povoavam seus sonhos. Isso aproxima um tipo assim de um herói da Odisséia.

Esse sentido de humanidade e tragédia daquele que, no atacado, era tratado até então apenas na forma de farsa, também se estende ao arrombador, Ciavacelli, pai atento e afetuoso. O fato de o personagem mais cômico do filme ser justamente um "doutor", e não os malandros e pequenos patifes que este recruta para o roubo das joias, atesta a engenhosidade e o humanismo de Huston: não é na educação formal, na classe social, na relação provinciano/metropolitano ou nos títulos que se vai buscar a integridade das personagens, mas nas suas atitudes e respostas, concretas diante das circunstâncias. Eis uma visão bastante americana da questão. E nesse sentido, descontados os europeus emigrados, que tanto contribuíram para a consolidação de Hollywood, Huston assoma, ao lado de Hawks, Welles e Ray, como um dos primeiros grandes cineastas originalmente americanos a propor uma forma de pensar e um comentário social mais refinado em seus filmes. Quer dizer, um comentário social modernista, distanciado do inveterado otimismo - um tanto romantizado - de um Capra.

Além disso, embora o protagonismo seja Dix Handley (Sterling Hayden), o brutamontes com um passado trágico, o filme trabalha num regime de polifonia quase tão amplo quanto The Best Year of Our Lives (William Wyler, 1947). E, aqui, levando-se em conta a ascendência que Wyler teve sobre Huston. Isto é, que o cosmopolita europeu Wyler --- um judeu alsaciano -- teve sobre um estadunidense do Sul. Essa profusão de personagens no primeiro plano, dando-se a conhecer de forma igualmente instigante, será depois retomada com ainda mais ênfase --- e entropia --- por realizadores como Sam Peckinpah e, em especial, Robert Altman.

Mas parece que até Kubrick herdou algo de Huston. Não propriamente na esfera do estilo, mas do tema. Ou pode-se conjeturar até que ponto a herança não foi mais que a refração de Wyler em Huston. Wyler e Ophüls formaram-se como judeus numa Europa bastante diversa da que passou a existir depois da I Guerra, do Tratado de Versailles, da extinção do Império Austro-Húngaro, da ascensão do fascismo e do nazismo. De algum modo, Kubrick irá herdar essa sensibilidade de judeu da europa central. Irá cultivá-la. Mesmo que seu filme inicial, The Killing (1956) seja bastante decalcado deste The Asphalt Jungle. Já Huston foi um cineasta prolífico. Muito do que fez é irregular. Mas não se sabe se teria feito seus melhores filmes --- como este, The Maltese Falcon (1941), The Treasure of the Sierra Madre (1948), Key Largo (1948), The Misfits (1962), Fat City (1972), Wise Blood (1979) e Under the Volcano (1984) --- se não tivesse também colecionado alguns malogros --- Moby Dick (1956), Annie (1982), The Unforgiven (1960) e, até certo ponto, The Night of the Iguana (1964) e Prizzi's Honnor (1985). O fato, aliás, de haver um desnível tão patente no conjunto de sua obra, só a torna mais fascinante, desque os melhores filmes nem sempre foram bem na bilheteria. E isso também aponta para outra questão: a do filme ou como entretenimento leve ou como obra densa. Ou indissociavelmente como ambos.

Além disso, The Aspahlt Jungle propõe Hayden como um dos grandes anti-heróis dos anos 1950. Ele retornará em papel ainda mais dúbio no prismático Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954). Neste, ao invés de uma amante casual e submissa, é onde, por fim, defronta-se com sua verdadeira femme fatale. Mas igualmente vê-se imbricado no mesmo violento processo de linchamento moral que uma comunidade regida por valores fundamentalistas e vindicativos move contra a companheira --- e, por tabela, contra si próprio. (Esses valores, quando manipulados e distorcidos, muito se assemelham aos excessos praticados por alguns setores de minorias contemporâneas em nome de certa "justiça tardia" ou "reparação histórica").

Além da densidade das personagens, outro aspecto característico de The Asphalt Jungle é a relação dessas personagens com a cidade. Ou seja, com a cidade modernista propondo-se com uma personagem a mais --- e não somente um espaço mais ou menos neutro, anódino, percorrido por elas. A sequência inicial, a de uma cidade deserta e anômica, reforça essa ideia. E está magnificamente captada pela fotografia de Harold Rosson. Aliás, esses espaços abandonados ou degradados, "espaços da anomia", waste lands, terras de ninguém, estão em campo no início e recorrem algumas vezes ao longo do filme. Eles contrastam justamente com a próspera região em que se dá o roubo das joias. Ou ainda com os interiores das duas casa de Emmerich (Calhern): a que vive com a esposa (Tree), e a que frequenta a amante. E eis que uma Marilyn Monroe deslumbrante surge em seu primeiro papel de algum destaque, constituindo provavelmente o fato novo mais bem iluminado de toda a película. Literalmente.

De qualquer forma, para Dix, a cidade é de fato lugar inóspito: selva de asfalto, onde ele perdeu o rosto. Onde é incapaz de se reconhecer. Se o Doutor Ridenschneider sonha em mudar-se para uma metrópole, a Cidade do México --- onde há boa diversão, além de beldades sem conta, para se correr atrás --- Dix, do contrário, deseja voltar para a fazenda da família no Kentucky. De certa forma, acaba logrando isso. Só que o custo é alto. E ele paga com a vida o preço da passagem de volta. ...

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