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Bem aqui, numa planície sombria


Conversa#63 - Reclassificando Clássicos [22]

Clash by Night (Fritz Lang, 1952) cin. Nicholas Musuraca

Há algo de orgânico nos planos de marinha propostos por Nicholas Musuraca ao início de Clash by Night. Esses planos fazem mais do que documentar a vida em Monterey, pequeno porto pesqueiro na costa central da Califórnia. Mais do que ocorrer como prolongamento de disposições e humores das personagens, como afirmam mais de um crítico, eles antes supõe uma natureza e alguns ritmos sociais que prosseguem tanto quanto indiferentes às pequenas misérias e sucessos das personagens. Seu aspecto plástico faz lembrar Drifters, o emblemático documentário dirigido por John Grierson em 1929. Outro filme que pode vir à mente é o The Breaking Point (Michael Curtiz, 1950). A vivacidade documental dessa abertura também alude a um poema de Mathew Arnold, "Dover Beach" (1851), em que se pode ler nos versos finais, depois da descrição de uma cena marinha noturna:

[...]

And we are here as on a darkling plain Swept with confused alarms of struggle and flight, Where ignorant armies clash by night.

Os versos comentam a extinção da fé, a imersão na angústia do mundo moderno. Mas essa é uma fotografia onírica de tão real. A segunda ou terceira melhor do mago das lentes: Nicholas Musuraca. Gastou-se muita tinta e papel celebrando as --- aliás insofismáveis --- proezas técnicas e intuições estéticas de Gregg Toland. Mas também nesse impulso perdeu-se de vista alguns companheiros de geração. E o mais subestimado deles parece ser Musuraca. O estilo noir, no entanto, interpunha um desafio. E esse desafio foi comprado por não poucos fotógrafos: John F. Seitz, Burnett Guffey --- talvez o mais prolífico cinematografista da era noir clássica --- Lee Garmes, Norbert Brodine, William H. Daniels, Joseph Macdonald, Russell Harlan, Joseph Ruttenberg, John Alton, Sidney Hickox, George Barnes, George E. Diskant, Milton Krasner, Boris Kaufman, Stanley Cortez, Russell Metty, o legendário James Wong Howe, entre tantos outros).

Quando gaivotas e leões marinhos agitam-se com a chegada da flotilha de traineiras, quando forcejam por predar as sardinhas que escapam aos grandes alçapões, no que os porões se estão esvaziando; é também o momento em que a fábrica de beneficiamento apita. Boa parte da população de Monterey está a acordar e dirigir-se para os portões da fábrica. Ainda é madrugada. Mas vemos apenas uma operária, Peggy (Marilyn Monroe) de fato erguer-se da cama e vestir-se. Assim como dos tripulantes das traineiras, que adentram a baía, vemos apenas as expressões de Joe Doyle (Keith Andes) e Jerry D'Amato (Paul Douglas), no instante em que o primeiro cruza a ponte do barco, portando uma caneca de café, que o outro sorve, enquanto maneja o timão. Tudo é faina, movimento entediado. Automatizado.

Imediatamente, os milhares de peixes são guindados mecanicamente até uma esteira móvel no interior da fábrica, onde serão triados e beneficiados por mãos operárias. Até serem, então, acondicionados junto com óleo em latas de conserva. Nessa etapa de beneficiamento, já vemos Peggy (Monroe) junto à esteiras. Enquanto essas rotinas monótonas deslizam na imagem --- em planos inusualmente ágeis, para compor uma contemplação --- algo de excepcional acontece: uma forasteira, distinta, meia-idade, envolta numa capa de chuva, desce de um trem e dirige-se ao café encravado nas docas da pequena cidade. Essa forasteira se chama Mae Doyle (Barbara Stanwyck). Ao passar no café -- excessivamente asséptico e charmoso para uma birosca no cais -- encontra por acaso com Jerry D'Amato (Douglas) que é ninguém menos que o comandante e proprietário do barco pesqueiro em que seu irmão (Andes) trabalha.

Então ficamos sabendo que ela não é tão forasteira assim. Apenas havia partido há dez anos. Para fazer a vida. E a batalha não foi ganha. Esse fracasso em retorno será trampolim para muitas mágoas e peripécias. E elas começam na recepção fria do irmão e na empatia, quase animal, da namorada do irmão (Monroe):

---Home is where you come when you run out of places. [A casa é pra onde se vai quando os outros lugares acabam]. --- diz Mae Doyle. E impressiona o grau de lucidez de Fritz Lang em relação à questão feminina. Ele, ao contrário de Nicholas Ray e até certo ponto Joseph H. Lewis, não precisa masculinizar suas protagonistas para torná-las humanas, inteligentes, complexas e, sobretudo, questionadoras.

Toda rotina transcorre com invejável fluidez. O mero fato de Mae (Stanwyck) aguardar no pórtico de casa até que o irmão volte, acompanhado da namorada, recém-saída da fábrica mordiscando um naco de sardinha, acresce um componente casual de espera e de tédio. Um lapso que à época bem pode ser mensurado pela quantidade de cigarros tirados do maço. O enfado do irmão não ajuda muito a desfazer essa espera. Tensão. No interior, um quarto despojado, há muito em desuso, aguarda pela recém-chegada, enquanto a namorada do irmão lhe prepara um café.

O tédio é o sentimento geral deste filme. É a consequência mais imediata do motivo do filme: a ausência de fé no mundo moderno. O que equivale a dizer, com o ciclo de filmes em estilo noir, Heidegger e o existencialismo francês (Camus, Sartre) chegam ao cinema. Ora, o fulcro da filosofia de Heidegger, em termos de plasmar o sentimento dominante na condição humana moderna, é o tédio.

E também o tédio é o motivo último das bruscas mudanças de atitude de Mae (Stanwyck), Earl (Ryan) e, em menor grau, Jerry (Douglas). O que no fundo os impele a rebelar-se contra a maçante rotina, o trabalho repetitivo --- que, aqui, parecem replicar ao invés de repelir os ciclos naturais --- é o tédio. O tédio desnuda o egoísmo de cada um. Ou seja, torna consciente e sufocante a incapacidade de sacrifício pessoal em benefício de algo mais coletivo: um cônjuge, uma família, uma comunidade. No fundo, quem ainda esboça algo nesse sentido é a consciência ingênua, de pescador, de Jerry. É ele que toma o relógio-despertador em suas mãos e atrapalha-se na hora de desativar o alarme. A cena, ocorre num momento de tensão, mas não deixa de provocar o riso sarcástico de Earl.

Jerry é um pai afetuoso. Um marido comprometido, solícito. Um filho grato ao pai. Um capitão de navio querido por seus subordinados. E, ainda assim, se ninguém assoma mais desajeitado, é porque a índole de Jerry, sua inata bondade e altruísmo, está em flagrante descompasso com os valores de seu tempo.

Mae irá dividir-se, então, entre esses dois homens. Será disputada por eles. E se ressente disso, porque não se quer coisificada em troféu. Jerry D'Amato (Paul Douglas) é honesto e um tanto insosso. Um marinheiro industrioso, de opiniões senso-comum e ar bonachão. É também louco por ela. O outro, Earl Pfeiffer (Robert Ryan) é misógino, velhaco, manipulador, mas bastante charmoso. Parece andar encharcado em ressentimentos e auto-complacência. Por acaso é projecionista de cinema, uma profissão que guarda algum glamour, pelo menos na provinciana Monterey de então. Como manda o figurino, Mae acaba casando com o honesto, Jerry. E, claro, traindo-o com o velhaco, Earl.

As cenas gravadas por Musuraca envolvendo a cabine de projeção e a sala de cinema serão depois glosadas por Robby Muller e Wenders em Im Lauf der Zeit (1976).

Há muita amargura e dor na vida dessas personagens desimportantes. Mas a plenitude com que este filme as propõe, com seus egoísmos, volubilidades, caprichos, pequenas veleidades, paga o ingresso. As belas e desoladas marinhas do início, com sua amplidão, parecem reforçar a atmosfera de prisão existencial que degrada, sem remissão, a vida, nesse pequeno porto. Os ciclos passam. Após um inverno gélido, vem o verão escaldante. As gaivotas e leões marinhos agitam-se e uma majestosa natureza segue seu curso, indiferente. As flotilhas de traineiras se fazem ao mar. E os três envolvidos no clássico triângulo parecem estar fadados a ter de atravessar o inferno, segurando a barra do vestido ou arregaçando a bainha das calças, antes de chegar no lugar a que se chega pelo desaparecimento de outros lugares.

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