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Bonnie e Clyde antes do tempo


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Conversa #50 - Reclassificando Clássicos [9]

Gun Crazy (Joseph H. Lewis, Estados Unidos,1950 - cin. Russell Harlan)

Gun Crazy (1950) amplifica o They Live by Night (1948) de Nicholas Ray, que por sua vez já tivera a pedra cantada por You Only Live Once (1937), de Fritz Lang, um dos precussores do cinema noir. Gun Crazy constitui também uma visível antecipação de Bonnie and Clyde (Arthur Penn, 1967), ainda que sem as liberdades de roteiro deste, uma vez que feito à época do Macartismo. Conta, por sinal, com roteiro de Dalton Trumbo (sob pseudônimo, claro). E joga com a capacidade de sedução de uma mulher. Uma atração de circo, por sua beleza e boa pontaria, Laurie Starr (Peggie Cummins) envolve-se com Bart Tare (John Dall), e o casal passa a levar uma vida de crimes e assaltos, após um breve interregno de trabalho circense.

Só que Bart, apesar de um exímio atirador desde criança, tem problemas na hora de matar ou ferir pessoas (ou mesmo seres vivos). Ora, isso é precisamente o que não falta a Laurie. Assim, um forte subtexto sexual percorre o filme, e enviesa pela prevalência de Laurie sobre o tímido Bart. Este é incapaz de expressar-se de outra forma, senão atirando. Mas a pontaria e as armas para Bart não vão além dessa dimensão expressiva: estética, lúdica. Aqui, temos o antípoda do casal de They Live by Night, onde a ternura e dedicação de Keechie (Cathie O’Donell) por Bowie (Farley Granger) é comovente. Constitui mesmo uma das pedras de toque do filme.

Em Gun Crazy, os papeis de gênero são, no entanto, habilmente baralhados: é Bart (John Dall), o homem, quem de imediato aparece como detentor de uma sexualidade ambígua, complexa, que o aproxima sem esforço de atores do talhe de um Anthony Perkins. Bart é exímio com a arma exatamente por não ser um amante exímio, parece implicar o pleonástico roteiro de Trumbo. Além disso, sua incapacidade de matar passa por sua incapacidade de atingir plenamente o orgasmo. Não por acaso, o título alternativo de Gun Crazy é Deadly is the Female. Bart, no entanto, uma única vez na vida acaba atingindo esse ideal orgasmático. E é precisamente no instante em que mata Laurie. Ambos se encontravam encurralados num charco (de resto, bastante caracterizado no estúdio), e ele não tinha mais dúvidas: se não a matasse, ela executaria os dois amigos de infância que vieram tentar persuadir o casal a se render. Ato contínuo, Bart é executado logo em seguida pela polícia. Seu corpo desaba sobre o de Laurie. E então seus corpos fundem-se como se em testemunha de uma única e derradeira foda “pra valer”.

A situação do orgasmo, guardadas as devidas proporções (e aqui posta bem mais em subtexto e conhecendo uma inversão --- é o homem quem não consegue) faz lembrar o Jeanne Dielman (1975), de Akerman. Pois observem que se trata da mesma situação: no instante em que se consegue atingir o orgasmo, este é seguido pelo assassinato do parceiro. Embora em Gun Crazy esse único gozo não esteja mais que implícito, por conta da censura de época.

É irregular, porém de contornos gerais absolutamente brilhantes, a fotografia deste noir. Onde há consideráveis perdas -- sobretudo em desfoques bem ressaltados -- são em determinadas cenas noturnas, bastante pontuais e em sequência, enxertadas no miolo do filme. Pontualmente em cenas de perseguição em carros. Senão por isso, o esplêndido trabalho de Russell Harlan, propondo um visual ‘crisp’, nítido, sem quase nenhuma difusão glamurizante, mereceria crédito irrestrito nessa produção, que, em alguns momentos, aproxima-se da fotografia documental. Em especial, nas brilhantes cenas tomadas a bordo de carros em planos-sequência e em externas. Foram empregadas câmeras do exército americano usadas para documentar ações em espaços estritos, durante a II Guerra. A fotografia de Gun Crazy é das mais inventivas postas a serviço de um filme B que, a exemplo de Kiss Me Deadly (Robert Aldrich, 1955), alçou-se ao patamar de um clássico inolvidável.

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