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Um olho no peixe, outro no gato

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Conversa #52 - Reclassificando Clássicos [11]

Sudden Fear (David Miller, Estados Unidos, 1952 - cin. Charles Lang)

A reação de Myra Hudson (Joan Crawford) ao descobrir as maquinações do recém-marido, Lester Blaine (Jack Palance), para ficar com sua fortuna mais parece tirada a marteladas do cinema mudo. Bastava para tanto trocar a mensagem do gravador por cartelas, e estava feito. Sudden Fear, portanto, é esse noir estranho, que ao mesmo tempo tem a modernidade de Double Indemnity (1944), A Touch of Evil (1958) e Vertigo (1958) conjugada à pantomima do cinema mudo em determinados instantes. Além disso, pauta-se por um moralismo tacanho ao desautorizar um casal em que a mulher surge mais madura e bem sucedida que o marmanjo.

O uso de locações o faz moderno, ágil. Mas há algo de pesado na caracterização dos atores e na direção de arte, nas cenas de estúdio. E sobretudo na atuação dos protagonistas: Joan Crawford e Jack Palance. Crawford em especial --- já uma atriz madura à época --- parece despedir-se do cinema mudo. Dentro de dois anos estará na tela em Johnny Guitar, para liquidar de vez a mulher à antiga, e baralhar o jogo dos gêneros. Mas, aqui, no entanto, sua personagem a despeito de bem nascida, bem sucedida autora para teatro, independente financeiramente, ainda interpreta a mulher que deposita seu lastro de segurança num homem, por meio do casamento.

Ocorre que o homem com quem se casa é mais jovem que ela e um ator frustrado. Aliás, desconsiderado por ela própria para um papel-chave em uma de suas peças de maior sucesso, no passado, antes de casarem. O excesso de mau melodrama ameaça morder esse noir como um cachorro raivoso. E efetivamente o morde. Ainda assim, a fotografia, o carisma de Crawford e Palance, além de um bom elenco de apoio evitam que o naufrágio no rumo das velhas convenções seja integral. Embora pareça iminente.

O uso do gravador ao modo de um diário faz o filme assemelhar-se a Double Indemnity (1944). E que o disco emperre quando a outra sugere uma "solução" para o caso soa caricato. A solução trata do próprio assassinato de Myra. (Improvável que com tamanha prova, ela tenha se portado tão mal no manuseio. Não tenha acionado a polícia. Optado pelo divórcio imediato. É também pueril o estratagema de tentar imitar a caligrafia do marido e da amante deste, para forjar uma correspondência entre ambos). Já o uso de San Francisco como locação, o aproxima de vários filmes emblemáticos feitos tanto antes como depois (integral ou parcialmente) nessa cidade: Vertigo, Out of the Past, Nora Prentiss, Dark Passage, This Gun for Hire, The Sniper ou Kiss me Deadly.

A trama também ressoa algo do Sunset Boulevard: uma mulher mais velha que se deixa atrair para uma relação de abuso com um homem mais novo, subordinado a ela no ofício que exerce. Enfim, há obviamente, aqui, não só um elemento de vingança como também certa rejeição a casais formados por uma mulher mais madura e bem sucedida e um homem jovem, um tanto outsider, em busca de ascensão social. (Embora o contrário também nem sempre seja aceito sem certo grau de ironia, como no Asphalt Jungle ou em Scarlett Street). E porém em Sudden Fear parece ser mais que isso. É como uma recorrente advertência de que as coisas não se misturem: classes sociais, faixas etárias, e, acima de tudo, tipos étnicos. Um sujeito jovem, atlético, mas não exatamente o protótipo do ariano, como Blaine (Palance), há que ser posto na condição de suspeito ou de ameaça.

Moralismos à parte, há bom entretenimento neste filme desproporcionalmente esquizo. Dividido entre o filme mudo e o filme moderno sonoro, em cores. Parte dessa metade moderna faz de um cachorrinho mecânico boa personagem. De outro modo, o papel de Myra valeu a Crawford uma indicação a Melhor Atriz. Mas vista com a distância de hoje, essa indicação da Academia parece mais contemplar o conjunto da obra do que esse filme específico, em que Crawford ameaça retornar ao excesso expressivo do cinema mudo e da pantomima na cena crucial. Enfim, um melodrama posto em estilo noir, e com algumas concessões às fórmulas do passado.

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