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Onde começa a sarjeta

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Conversa #54 - Reclassificando Clássicos [13]

Where the Sidewalks End (Otto Preminger, 1950 - cin. )

Os pesados táxis de onde saem ou se intrometem homens de capa de chuva e fedora semelham alguma afinidade com moluscos. Grandes moluscos que saíram das margens do Hudson para levar as pessoas a passeio pelas ruas retilíneas de Manhattan. Ruas nomeadas por números, formando uma estranha série discreta, no senso matemático do termo. Esta série poderia ser também conformada por uma série de filmes que a partir de 1948 tornaram a paisagem de Nova York uma sorte de caráter a mais nas tramas gravadas ao longo dessas ruas e becos pelo prazo de dez anos.

Um tira é chamado a atenção por pegar pesado. Recebe uma advertência do comissário geral de polícia no dia em que um de seus colegas é promovido. Como em casos assim, não adianta. Ao apurar uma confusão que acaba em morte por conta de dívida de jogo, o tira termina tirando a vida do principal suspeito. Age em legítima defesa. Porém com o costumeiro excesso de força.

Desolado, contempla o cadáver, e sabe que contar a verdade significaria o fim de sua carreira na polícia: a vítima era herói de guerra e possuía boas relações. Ele esconde o cadáver num armário e assume as vezes do suspeito, falseando uma ida à estação ferroviária e comprando um bilhete para Pittsburgh. Logo em seguida, retorna ao local do crime, topa com seu colega de dupla a vistoriar o aposento, mas a tempo de evitar que o outro dê com o defunto.

Em torno dessa contrafação gira a trama de Where the Sidewalks End. Dana Andrews responde pelo detetive durão, Mark Dixon. É um daqueles filmes em que se sai zanzando com um cadáver por aí. E que fez o gáudio de comédias negras como The Ladykillers (Alexander Mackendrick, 1955), filme britânico que virou cult e foi refeito pelos irmão Coen em 2004. A radicação de tal subgênero é a comédia de erros. Mas àquela altura ninguém poderia entrever num tenebroso noir algum rastro de humor sardônico. Muito menos na puritana e literal América branca e protestante, dos anos 1950. A mesma que serviu de molde para o ensaio de Max Weber propondo o elo entre capitalismo e calvinismo algumas décadas antes.

Como previsível, numa comédia negra, o obstáculo ao plano de ocultamento do cadáver é um viúva idosa que costuma ouvir música junto à janela do bloco de apartamentos até desoras, e é vizinha da vítima. Como em todo noir que se preze há navios e trens por perto. Porque o que cerca esses veículos são vastas porções de terra para trânsito. De gente chegando. E gente partindo. Os que vão permanecendo tentam tirar óbvios dividendos desse trânsito. Terra de ninguém, onde reina o baldio. O que chamamos de "espaços da anomia".

O fato interessante, para o nosso tempo, vem precisamente da viúva postar-se em sua sala à noite "para ouvir música". É uma atitude que se desconhece. Que envolve um tempo lento, contemplativo, que não mais há. Alguém veste-se a contento. Senta-se sozinha na poltrona predileta, a observar a rua em fora de hora, solidão e outono. E escuta música. Ou seja, escutar música não é acessório para qualquer outra atividade. Senão "a" atividade.

Naturalmente a outra testemunha do caso é a femme fatale em demanda: uma modelo que trabalha para uma modista afamada em Manhattan. O circo está armado. Sua beleza faz com que portas instantâneas sejam instaladas e ambram em seguida em meio às paredes mais cinzas e vãs. Façam suas apostas. Para os habituados com o universo noir parece inevitável que Mark Dixon (Andrews) irá apaixonar-se por Morgan Taylor-Paine (Gene Tierney). Ela é na verdade recém-viúva do herói de guerra morto por acidente pelo detetive Dixon. Apenas andavam separados recente por conta de uma briga.

O ódio que Dixon devota o gângster Tommy Scalese (Gary Merrill) confunde-se com o ódio que sente do próprio pai, que havia sido um fora da lei. Logo, há um componente parricida por trás do comportamento extra-violento de Dixon. Ou do fato de haver escolhido uma profissão que é a inversão da profissão do pai. Tudo isso para não falar de sua obsessão com Scalese. Uma leitura às vezes um tanto esquemática da psicanálise não descola tanto da literatura hard-boiled quanto do filme noir, que é seu desdobramento na tela.

Por seu turno, ao começar um affair com a viúva, Dixon assume ainda mais a persona do defunto. E naturalmente aqui reside a charada dessa comédia negra, conduzida com luvas de pelica por Otto Preminger, e fotografada em película de um preto e branco alísio por Joseph LaShelle. Impressiona a quantidade de filmes da época que tomam Nova York como uma espécie de musa. E breve Morgan irá descobrir que Dixon não está fazendo-lhe tanto bem apenas por altruísmo.

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