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Comprar morangos

Conversa#56 - Reclassificando Clássicos [15]

White Heat (Raoul Walsh, Estados Unidos, 1949 - cin. Sidney Hickox)

Que uma senhora, uma mãe de mais de 60 anos, não só sancione mas participe da vida do filho como líder de uma quadrilha de gângsters, é um dos predicados de White Heat. Mas naturalmente ela não deixa de ser mãe, e seu filho uma espécie de prolongamento não só genético mas espiritual. Em uma das cenas iniciais, mamãe-gângster abandona o esconderijo para comprar morangos para o filho. Isso desencadeia uma perseguição policial. O resultado dessa perseguição só não é maior, porque mamãe já está adestrada a perceber quando está sendo seguida enquanto dirige.

Então, para encerrar uma outra perseguição de carro, que sucede esta primeira, Arthur "Cody" Jarrett (James Cagney), o filho de mamãe-gângster, acomoda seu veículo num drive-in. O filme projetado, Task Force (1949), é sobre a Segunda Guerra Mundial. Mas outra guerra mundial ocorre na sua própria casa: a da esposa (Virginia Mayo) contra a sogra (Margaret Wycherly). Na imagem, a situação é posta em termos gráficos: a mãe se interpõe entre o filho e a esposa no banco da frente do carro. Mesmo num drive-in. Desnecessário dizer que, a essas alturas, a esposa tem um caso extraconjugal com um cupincha mais jovem e bem apessoado. E que esse cupincha deveria sentir-se um condenado à morte se conhecesse um pouco mais seu chefe.

Quando indagada sobre a película de guerra pela polícia, a mãe a resume em uma palavra:

---Exciting.

Excitante é também este filme híbrido, tendendo para o filme de gângster, mas definitivamente gravado no estilo noir. A trama brinca com a impossibilidade de um homem estar ao mesmo tempo em dois lugares. Mas também exercer ao mesmo tempo dois papéis distintos: o de filho e o de amante. Por isso, Cody assume a autoria de um crime menor, em outro estado, para escapar de ser acusado por outro, maior. (Da mesma forma, embora não de maneira consciente, seu crime maior foi o de ter optado pela mãe antes que pela esposa).

Quanto aos crimes simultâneos, a coisa vai bem até certo ponto, pois um único policial testemunhou e trocou tiros com Cody na Califórnia --- onde supostamente ele não se encontrava. Mas aqui a palavra da mãe e da esposa sobrepõem-se à do policial. E este tem de dar tratos à bola para solver a melhor maneira de responsabilizar o gângster por um lucrativo assalto a um trem.

Um tira (Edmond O'Brien) será infiltrado na cela de Cody para apurar o modo engenhoso com que o mesmo conseguiu escapar às garras da lei após roubar milhares de dólares de um trem-pagador sem vazar uma só nota. Logo, boa parte do filme transcorre dentro de uma penitenciária. Do lado de fora, a mãe zelosa comanda o bando como lugar-tenente do filho preso. E, aos poucos, o policial infiltrado segue ganhando a confiança do gângster.

Cody (Cagney) forja o modelo do assassino psicopata que povoará as comédias negras de Tarantino e, sobretudo, dos Coen em breve futuro. O surto de violência que desencadeia ao saber da morte da mãe, no refeitório da prisão; o assassinato a tiros de um desafeto trancado num porta-malas enquanto degusta uma coxa de galinha; e a resistência final, em que sucumbe mercurialmente numa refinaria em chamas; são três de de seus momentos mais emblemáticos. À sua vez, os recursos científicos da polícia, tão sublinhados no filme, hoje parecem pueris.

White Heat antecipa a semi-documentariedade de filmes como The Asphalt Jungle (1950), Gun Crazy (1950), The Killing (1956) e tantos outros. Possui em seu centro um dos vilões mais rematados e complexos do universo noir. Alguém para quem fazer o mal é uma espécie de forma artística. Esta personalidade complexa expande-se de duas maneiras: 1. metódica e subrepticiamente, ao idear suas maquinações e planos de assalto; 2. em descargas brutais de violência ao executá-las ou ao sentir-se acuado. É neste segundo ponto que torna-se um digno antecessor dos surtos de violência que acometem, por exemplo, os personagens de Scorsese, em cenas nas quais parecem descarregar no corpo do outro uma violência recalcada por anos de humilhação ou acedia.

A agilidade de White Heat faz tudo se resolver em poucos planos. O filme é dirigido com mão de mestre pelo veterano Raoul Wash, com três valiosas colaborações: Owen Marks na edição, Sidney Hickox na direção de fotografia e um elenco escolhido a dedo, tendo adiante um James Cagney pletórico, em torno do qual gira toda a ação. White Heat é um clássico do filme de gângster. Um digno antecessor de Bonnie and Clyde e das mais negras comédias pós-modernas. E, claro, Cody Jarrett é o avô de Anton Chigurh .

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