O outro Marlowe
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Conversa#55 - Reclassificando Clássicos [14]
Muder My Sweet (Edward Dmytryk, Estados Unidos, 1944 - cin. Harry J. Wild)
Espécie de irmão gêmeo de The Big Sleep (Howard Hawks, 1946) em que o Philip Marlowe ao invés de Humphrey Bogart está a cargo de Dick Powell. Difícil sobrepujar Bogart. Mas a trama intrincada é a mesma. Assim como a ligação com gente do povo e com burgueses --- geralmente novos ricos. Certa imponderabilidade proposital: Marlowe narra o filme em flashback de olhos vendados, ao modo de um visionário, um Tirésias do universo noir. A presença de uma femme fatalle mais rica e sofisiticada, tingida em platinum blonde, diz presente. E assim caminham os códigos. Marlowe passa o filme recebendo cédulas de dólar amarfanhadas de mais de uma parte. E vários assassinatos se dão debaixo do seu nariz. Há os que criticam o excesso de bonomia no Marlowe de Dick Powell. Outros entendem que em Powell Marlowe achou sua versão definitiva. Mas talvez as atuações de Bogart e Powell suplementam-se mais do que brigam entre si.
Há, de todo modo, muita modernidade no filme de Dmytryk. E um apelo a códigos já mais bem estabelecidos que no Maltese Falcon (John Huston, 1941), filme com o qual também pode ser posto em analogia, e do qual deriva algumas convenções. Entre elas, o cinismo do protagonista, a perspicácia dos diálogos, o glamour da femme fatale, uma rede de chantagens e suborno envolvendo "gente de bem" e o gosto por ambientes exóticos --- o que inclui uma paradisíaca casa de praia. O outro filme que lhe passa roçando é The Big Sleep (Howard Hawks, 1946). O protagonista é o mesmo detetive criado por Raymond Chandler, embora vivido por outro ator (Bogart). [Assim como no Maltese Falcon, o ator é o mesmo, e o outro é o detetive]. E a trama de The Big Sleep seja ainda mais confusa, embora a disputa entre ambas não pareça menos ferrenha.
À certa altura em Murder My Sweet, Marlowe protesta por ter sido levado, pelo elevador de serviço, a conversar com um figurão. O figurão censura-o a brusca mudança de assunto. Mas ter de pular de um para outro assunto faz parte do repertório fático de um detetive particular, se deseja acumular informações, e ainda mais de um andar para o outro. E há certa gentileza inesperada nesses bandidos que usam piteiras de marfim, cravos na lapela, e expressam-se com uma perspicácia, uma presença de espírito de causar inveja às personagens de Shakespeare, embora tenham saído direto das brochuras de pulp fiction e das revistas em quadrinho: como pode ser?
A tortura psicológica é uma das armas. E o modo como posta em campo, não menos engenhoso para os padrões de época, com alguns empréstimos do expressionismo alemão. Um cinema de pesadelos: portas entreabrindo-se em rangido mistério, teias de aranha, luminárias e ampolas postas em looping. Mas feito ainda numa época em que os bandidos eram gentis o suficiente para, ao atirar um corpo desfalecido numa câmara de torturas, não esquecerem do chapéu. Isso revela não pouco dos modos e da sociedade de então.
A ironia está por todo lado. Como quando ao escapar dessa tortura à base de narcóticos, em que passava a maior parte do tempo prostrado, tendo alucinações, delírios, Marlowe consegue fugir do casarão depois de uma conversa não menos surreal com um médico. E de repente, a rua em que se encontra chama-se: Descanso Street --- assim mesmo, em castelhano. Mais adiante, o vemos acendendo o fósforo no traseiro de um cupido de jardim:
---Philip Marlowe, nome de um duque, e você não passa de um pé rapado --- diz a femme fatale em desconcertante sinceridade poucos minutos antes de morrer. Ela enverga um vestido que brilha mais que o assoalho da mamãe e o sapato do papai. É impressionante o quanto de verdade é dito por bandidos e escroques nos filmes noir. Ou o quanto os tiros decisivos vem dos maridos mais inofensivos. A modalidade, o estilo noir foi onde o filme cômico radicou-se com maior sofisticação. E essa sofisticação deriva de anedotas que só se consolidam numa brincadeira com suas próprias convenções. Tão únicas e carregadas.
O filme foi refeito algumas vezes. Quer dizer, partiu-se outras vezes do livro que lhe deu origem: Farewell, My Lovely, escrito por Raymond Chandler em 1940. Um filme homônimo, com o protagonismo de um Robert Mitchum demasiado velho para o papel --- mas nem por isso menos agudo --- foi produzido em 1975.
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