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Misoginia e tiros

Conversa#57 - Reclassificando Clássicos [16]

The Sniper (Edward Dmytryk, Estados Unidos, 1952 - cin. Burnett Guffey)

Este filme traduz muito do espírito estadunidense. Quer dizer, do propalado 'self made man' e 'do it yourself'. Na verdade, é a face reversa, mais obscura do slogan da Nike ('just do it). Ou seja, a possibilidade de, entre outras coisas por própria iniciativa --- como excelência no esporte, na arte, na vida, no amor, no jogo, nos estudos, nos negócios --- também a de tornar-se um "bem sucedido" serial killer, da mesma forma. A ideologia está na base das matanças coletivas sob a mira de um indivíduo solitário e deprimido. E quantas não foram expostas seguidamente em diferentes pontos e estados daquele grande país ao longo das últimas décadas.

Talvez o filme seja menos sobre um atirador psicótico e solitário do que sobre a notoriedade que recai em torno de um tipo assim. E uma tentativa preliminar de estudo da sua personalidade. Uma notoriedade, de resto, avidamente construída no rastro de cadáveres, pelos jornais e a TV, a partir da histeria coletiva. Sob o ponto de vista dessa histeria, e certa vontade ilimitada e tribal de linchar, este filme do início dos 1950 diz muito aos anos 2010. Basta abrir sua timeline no Facebook. A atitude agressiva de ir de encontro a algo conta muitos mais likes que palavras de paz, conciliação ou sincera amizade.

Em San Francisco, um jovem tenta esconder de si uma série de questões mal resolvidas do passado. Inclusive, claro, em relação à sexualidade. Entre outras coisas, isso o torna extremamente vulnerável e hostil às mulheres. Especialmente quando as pressente desejadas e possuídas. Ele autoflagela-se e tenta em vão ajuda médica. Por fim, acaba cedendo ao impulso, e seguindo uma conhecida até um clube de Jazz. Na direção de câmera mais a edição, a inveja que sente não poderia ser melhor captada que ao perceber que a jovem brunete a quem persegue é a pianista da casa, estrela do show. Um modesto cartaz iluminado revela isso. (Iluminado? Sim. Porque uma cena assim só pode se passar à noite). Mas, em seguida, vemos o perfil de Eddie Miller (Arthur Franz), o jovem psicótico, exatamente no lugar da efígie da pianista. Ela será a primeira a sucumbir.

A direção de fotografia, a cargo de Burnett Guffey --- junto com Nicholas Musuraca, "o" fotógrafo desses filmes sombrios e notáveis --- torna este noir menor um poderoso complexo visual que desdobra-se pelo suplemento entre a arquitetura --- de sobrados e terraços suprindo os desníveis e ladeiras de San Francisco --- e um atirador de elite ansioso por acomodar-se num terraço baldio e alvejar as passantes de sua escolha. Há uma litania entre ele e seu instrumento --- um rifle automático desmontável, com mira telescópica --- análoga à da pianista. A destreza das mãos é a mesma. Embora para fins completamente diversos.

O policial que investiga as ações do 'sniper' chama-se Tenente Frank Kafka, numa licença metapoética que iria parecer óbvia demais+

. O atirador sente-se realizado após abater as vítimas. Sim, quase ao modo de uma pianista ao finalizar sua peça. Mas isso começa a causar-lhe problemas na lavanderia em que trabalha, pois a excitação após as execuções lhe retira o sono e o faz perder a hora. O detalhe de a delegacia de polícia situar-se nas proximidades do clube de jazz onde trabalhava a primeira das vítimas surge como uma coincidência despropositada, embora de uma estimulante visualidade. Como quase todos os quadros neste filme extremamente plástico.

Arthur Franz, com sua jaqueta de couro é um pouco um James Dean dos pobres. (Há certa semelhança física entre ambos os atores). Há ódio juvenil e revolta sob essa jaqueta. Mas as semelhanças acabam aí. O grau de distúrbio de seu Eddie Miller parece incontornável se posto em analogia ao Jim Stark de Rebel Without a Cause (1955). Sua misoginia extrema tem nome. E um parentesco mais aproximado com o Norman Bates de Psycho (1960).

Quando sua senhoria sugere que mães devem ensinar garotos assim como garotas a cozinhar, Eddie exaspera-se:

---Minha mãe me ensinou foi nada.

Que ele guarde o vestido da primeira vítima, o manuseie como a um fetiche, e o destrua num misto de êxtase e agonia dá provas de seu desequilíbrio. E ainda mais se isso transcorre sob o olhar impassível de um bichano tomado de empréstimo a Poe. Mas, do mesmo modo, Eddie Miller faz parte daquele estirpe de heróis --- ou anti-heróis para ser mais preciso --- que vivem isolados, na mansarda, e podem tanto derivar para santos --- como no caso dos de Bresson e até certo ponto Samuel Fuller --- como para psicopatas sanguinários como neste caso (e em muitos outros, alguém lembra de Taxi Driver (1976))?

Sniper é um filme cuja narrativa lança mão de muitas "naturezas mortas", no senso deleuziano do termo. Ou seja, significativa parte da história é contada por objetos. Isso faz supor um filme visualmente bastante sutil e planificado. Como era moda nos roteiros da época, para além da faceta semi-documental e do namoro fácil com o clichê psicanalítico.

A cena do interrogatório dos suspeitos por si faria do autor das perguntas um réu fácil dos direitos humanos, nos dias de hoje, tal a desfaçatez criminosa com que trata os criminosos. Mas isso outros quinhentos são.

E embora sua personagem perca-se um tanto, atropelada pelo desenrolar da trama, há coerência ao se propor que um jovem psiquiatra, Dr. James Kent (Richard Kiley), saiba mais do perfil do criminoso que o experiente Tenente Kafka. Quer dizer, coerência com o Zeitgeist. Pois, como sugerido em textos sobre filmes da mesma época, estamos no momento em que psicanálise e cinema conhecem uma sorte de enlevo amoroso.

Mas até numa tragédia como esta há espaço para humor. Como quando dois funcionários da tinturaria onde Eddie Miller trabalha destilam piadas infames acerca de suas mulheres ou namoradas. Ou de como deveriam confiar ao franco atirador uma lista para que este as executasse. Isso faz reverberar o que vai pelas manchetes dos jornais e, em menor escalada, de uma televisão que começa a mostrar seu nariz no cinema. (Inclusive numa cena de terraços em que as antenas florescem como capim barba-de-bode). Revela-se também, evidente, algum grau de misoginia-ambiente, tão peculiar a meados do século passado. E quebrado aqui e lá por uma observação inteligente de e sobre as mulheres.

Há também nuances a considerar. Inclusive de classe social. A terceira vítima do atirador é uma socialite. Uma mulher culta, que dá entrevistas na TV local e é casada com um empresário influente. A partir de então, as investigações ganham nova dimensão, um contexto totalmente diverso. Praticamente redobrando os esforços da polícia.

Quando, em dada cena se divisa uma imensa roda gigante atrelada à outra, sabe-se que ali vai acontecer algo. Porque parece meio automático que lunáticos sintam-se profundamente atraídos por cometer crimes em parques de diversão. Sem dúvida há muito lugar-comum e previsibilidade na trama. Mas sua contação visual é tão atraente que nos mantém preso aos sons e às imagens até o desfecho.

Também explorados são "os espaços da anomia". Geralmente becos desertos, trechos de cais ou ferrovias. É o caso no último dos assassinatos do sniper. Ao descer por uma escada de incêndio, acuado, ele encontra-se junto ao leito de uma ferrovia, com vastos armazéns meio abandonados e uma terra de ninguém por diante. E, assim, esse jovem extremamente perturbado, viveu seus Estados Unidos de Ninguém da América, em mais este filme. Os assassinatos em série ganharam um documento premonitório. E Eddie atesta a capacidade de arrastar consigo uma série de vidas que, à primeira vista, "nada tinham a ver com a dele".

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