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Uma entre 5 milhões de histórias?

Conversa #58 - Reclassificando Clássico [17]

The Naked City (Jules Dassin, Estados Unidos, 1947 - cin. William H. Daniels)

Documentário era então um termo a ser evitado. Os cinegrafistas preferem "realista" por "documental" para caracterizar essa nova onda de filmes feita predominantemente fora dos estúdios, em locações. Em especial, nas cidades de Nova York e Los Angeles, mas não só. Neste rumo, The Naked City (1948), rodado em Nova York --- embora inferior ao Night and the City (1950) do mesmo Dassin, que se passa no submundo de Londres --- é uma declaração de princípios. Em seu início há uma apologia do documentário. Há também a afirmação, um tanto excessiva, de que a história do filme é uma entre as 5 milhões de histórias possíveis em Nova York. (Em 1948, com 5 milhões de habitantes, a Big Apple era então o maior aglomerado urbano do planeta).

Fácil explicar o porquê da rejeição do termo documentário pelos diretores de fotografia. À época, técnicos especializados, sem nada do empolamento e dos fumos estéticos (e falantes) de um Vittorio Storaro, os cinematografistas entendiam-se profissionais justamente por fazer filmes "corretos". Isto é, sem as tremedeiras, os eventuais desfoques, a falta de critérios quanto à iluminação e ao equilíbrio cromático, e a má qualidade de imagem dos filmes amadores, documentais, gravados geralmente em 16mm.

Eles não separavam o documental feito por um Flaherty de um documental feito por um amador, simplesmente porque a maioria desconhecia Flaherty. Ou Joris Ivens. Ou Alberto Cavalcanti. Ou Walter Ruttmann. Ou Jean Vigo. Ou Dziga Vertov. Ou o Luis Buñuel de Las Hurdes (1933). Ou a escola britânica de documentarismo, em torno de John Grierson. Portanto, para estes diretores de fotografia, filme era sinônimo de feature. De filme de ficção com duração média de uma hora e quarenta, mais ou menos. E documentário era coisa de amador, feita com baixo orçamento, qualidade técnica sofrível e escasso senso de composição.

Aqui os 'news-reel' da grande Guerra não jogaram em papel secundário. Com uma televisão apenas surgindo, as imagens da II Guerra estavam ainda diante de espectadores americanos predominantemente na telona, sob a forma do cine-notícias, que abria a sessão. E para tanto havia também um estilo fotográfico e editorial que depois viria a afetar diretamente o 'feature'.

Mas a orientação "semi-documental" deste filme de Dassin começa ao propor em protagonismo um veterano policial de 60 anos, interpretado por Barry Fitzgerald, ator irlandês provindo do vaudeville. Não é o mais apetecível dos heróis, está claro. Especialmente ao público feminino. Embora a atuação de Fitzgerald seja estupenda. (Além do que, a coadjuvância do jovem e "ajuizado" Dan Taylor compense um pouco a ala feminina assentada às primeiras fileiras, em 1947).

Durante um tórrido verão nova-iorquino, esse experiente detetive tem de desvendar o homicídio de uma modelo. A moça foi dopada com clorofórmio e em seguida afogada em sua banheira. (É claro que à simples menção, a palavra "clorofórmio" já passa recibo: o filme de que falamos foi feito sete décadas atrás). Um dos assassinos, no entanto, termina por matar o cúmplice e atirar o corpo no East River. Após árduo trabalho de investigação, o calejado detetive Dan Muldoon (Fitzgerald) com o auxílio do jovem assistente, Jimmy Halloran (Dan Taylor), acaba por elucidar o caso.

Seria apenas mais uma trama detetivesca, não fosse a gana com que se aplica às gravações em locação. Duas sequências são emblemáticas. Na primeira, o jovem detetive Halloran (Taylor) sobe com um colega por um elevador de andaime até o cimo de um arranha-céu em construção na Manhattan dos anos 1940, para interrogar um operário. (O espectador pode sentir a apreensão do figurante que o acompanha na subida para um local tão alto em um elevador rústico, usado por peões da construção civil).

A segunda é ainda mais famosa: a caçada final ao facínora, Willie Garzah (Ted de Corsia). Esta culmina com correrias e estrepolias pelas ruas do Lower East Side, e encerra-se com um apoteótico tiroteio na Ponte de Williamsburgh, sobre o Hudson, de onde se divisa, de seu ponto culminante, boa parte da área leste da metrópole.

Se o filme começa apregoando-se documental, falando genericamente do dia a dia e das vicissitudes mais prosaicas dos nova-iorquinos, termina por contar uma história verdadeiramente extraordinária. O paradoxo é este: juntando tudo, a rigor há muito pouco de documental na trama de The Naked City, senão, claro, as locações. Ainda que mesmo nessa direção, o filme esteja longe de ser o pioneiro ou o que mais e melhor lançou mão da Big Apple para contar sua história. (Diretores da mesma época como Anthony Mann, Edward Dmytryk, Elia Kazan, JacquesTourneur, Samuel Fuller, Nicholas Ray, Fritz Lang, Otto Preminger, John Huston, Stanley Kubrick --- e posteriormente John Cassavetes, Robert Altman. Woody Allen e Wim Wenders --- entre outros, usaram e abusaram de locações urbanas, por vezes com resultados superiores). Ainda assim, nenhum fincou pé tão decididamente numa suposta linha documental para contar sua história, como intenção programática, no preâmbulo do filme. (Uma tentativa semelhante dá-se em T-Men (Anthony Mann, 1947), ainda que com outros propósitos e passando-se em duas cidades diversas: Detroit e Los Angeles).

Por motivos que em parte divergem das intenções iniciais de Dassin, sem dúvida pode-se ver neste filme uma Nova York tal como existiu há sete décadas. Crianças pulando corda ou tomando banho em hidrantes durante o escaldante verão (ainda tão distantes de tablets e smartphones). Multidões entrechocando-se e disputando à tapa uma vaga no metrô. Ou tomando o ferryboat para Staten Island. Uma cafeteria apinhada. A indiferença, a tristeza, a velhice precoce ou estampada nos rostos de um tempo em que velhos ainda não eram cobertos de tatuagem, e viravam anciãos. A ponte de Williamsburgh usada como playground, no fim de semana. Não é pouca coisa. A trama, o elenco, a mise-en-scène, até mesmo a ótima performance de Fitzgerald, como o escaldado e irônico policial, ficam em segundo plano atrás desses fatos. Ou dessas fotos.

Uma refração deste filme, uma trama menor diante de uma fotografia excepcional, que também guarda seu caráter documental --- e, no caso, sobretudo noturno --- de Nova York, será o Sweet Smell of Sucess (Alexander Mackendrick, 1957), tendo por trás das lentes ninguém menos que James Wong Howe.

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