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O que são férias sem suvenires?


Conversa #59 - Reclassificando Clássicos [18]

Kansas City Confidential (Phil Karlson, Estados Unidos, 1952) cin. George E. Diskant

Aparentemente o crime perfeito é o tema de Kansas City Confidential. Na cena inicial, vemos um sujeito de meia idade observando com olhos gulosos uma agência do Southwest Bank, em torno de dez da manhã. Logo em seguida, a furgoneta de uma floricultura dobra a esquina, e um sujeito com cara de quem não cultiva flores salta de dentro. Ato contínuo, um carro-forte aproxima-se da agência bancária, à frente da qual há uma pequena multidão aguardando a abertura do expediente.

O ponto de vista da câmera quase coincide com o do sujeito de olhos gulosos. Pontualmente às dez da manhã, a agência bancária abre as portas. O homem consulta um elaborado diagrama, onde há um mapa e uma lista de afazeres, uma tabela de horários. Ele estuda empiricamente possibilidades. A matéria é bem planejada, e o sujeito, auto-cognominado Mr. Big (Preston Foster), monitora tudo com precisão, como se tivesse sido escolado na mesma 'alma mater' do Dr. Reindenschneider de The Asphalt Jungle (John Huston, 1950). Posteriormente, esse filme será citado por Tarantino em sua estreia mesma, Reservoir Dogs (1992).

Aqui, tão importante quanto as expressões faciais dos envolvidos no assalto, são os dois relógios: o da instituição bancária e o que está no pulso do vilão imperturbável e metódico. Ele saca a caderneta de telefones e liga para um outro violão, bem menos fleumático, que, num quarto de hotel, tenta extrair um cigarro de várias bingas apagadas em um cinzeiro. Nesse ínterim, joga bozó sobre a colcha da cama. O telefone toca e o crime perfeito --- nem tão perfeito assim --- deste noir começa a desenrolar-se com a nonchalance, a boa fotografia e a invisibilidade editiva característica da época.

Mr. Big escalou três malandros para executar o crime estudado à perfeição. E são eles ninguém menos que Jack Elam, Lee Van Cleef e Neville Brand. Ou seja, a produção não está mal no casting. Brand, diz incisivo sob os óculos de sol, sem gastar os bugalhos:

---I don't like heroes.

Mas os três não passam de títeres manipulados pelo maquinismo mental do misterioso Mr. Big. Este só se apresenta àqueles sob máscara. Sua fala é distinta e bem embasada, embora firme. Algo da atenção aos detalhes no projeto de um assalto prefigura filmes onde esses detalhes são bem mais depurados, como o próprio The Killing (Stanley Kubrick, 1956) ou Odds Against Tomorrow (1959). São os 'caper films'. Ainda assim a cinematografia de George E. Diskant da forma como editada por Buddy Small, nos põe por diante de algo não muito distante de folhear um gibi --- essa experiência complexa e gozosa, que traz tanto de propedêutica em sua simplicidade. Que nos ensinou, desde cedo algo sobre narrativa e edição de imagens. Algo que pode constituir-se numa tremenda aula de decupagem. O que só uma vez mais comprova: simples não quer dizer fácil.

Mas chega a ser hilário, com os recursos de hoje --- a ubiquidade do olho que vigia (o tal panóptico de Foucault), por meio de câmeras postadas em pontos diversos 24hs ao dia --- que a simples substituição de uma furgoneta de floricultura pudesse responder, então, pela execução de um "crime perfeito". De outro modo, os "métodos" de interrogatório da polícia à época parecem bem pouco católicos. E a cada vez que o motorista da floricultura, inocente no caso, retorna a sua cela, desaba sob o beliche em dor e abatimento. E desabafa ao colchão toda sua frustração e revolta acumulando-se.

Na verdade, o filme estrutura-se em torno da imponderável vingança, que esse entregador de flores orquestra contra uma gangue de assaltantes profissionais. O tema parece provir do western. E é bastante americano: o homem que toma a justiça sob as próprias mãos. Mas soa um pouco cômico que um cidadão que tenha cometido delitos menores, e trabalhe honestamente como entregador de uma floricultura, saia no encalço de escroques, que de olhos vendados, poderiam fulminá-lo.

O entregador de flores é durão. Tough ao excesso, pode-se presumir. Porque há um festival de sopapos, neste filme particularmente violento. Mas daquele tipo de violência asséptica, diferente da tarantínica, em que as vítimas depois de uns sopapos a mais parecem uma galinha à cabidela.

De outro modo, alguns planos em pouca profundidade de campo, em Kansas City Confidential, nos ajudam a entender que a profundidade de campo é que é uma exceção. Recurso que deve ser usado com parcimônia e perícia. Porque, na verdade, é a pouca profundidade de campo que torna um filme esse espetáculo belo e verdadeiramente cinemático.

Alguma inconsistência de roteiro faz com que o fleumático e misterioso fora da lei que observa e planeja o assalto, no início, acabe se revelando mais desastrado que um elefante num quiosque de cristal. Acontece.

Por sua vez, o protagonista, Payne, tem algo decalcado de Cary Grant. Um mover de sobrancelhas, o olhar de sobreaviso para um dos lados, a expressão desconfiada, um franzir de testa. Um Grant americanizado e um tanto mais brusco. Um Cary Grant dos pobres, com se diria por aqui só um tempo atrás.

É um noir bastante assistível, apesar de distante da imprevisibilidade e do mistério. Que conte com um final feliz, um tanto xaroposo, não faz jus a certas oscilações da trama que insuflam algum charme e expectativas. É também um daqueles filmes que contam com uma fotografia acima da trama. Como uma personagem a quem não se pagou o imposto devido. Mesmo que em dois ou três passos, o uso de difusão (foto abaixo) para glamurizar os protagonistas --- especialmente as femininas --- assome datado, em discordância com a tendência geral de uma fotografia mais crisp, moderna e semi-documental. E isso num filme B salta ainda mais à vista.

E não deixa de ser irônico que Kansas City Confidential transcorra quase todo em um luxuriante resort para turistas no México. (No caso a Ilha de Santa Catalina, na costa da Califórnia fazendo as vezes do México).

O momento cômico é quando a espevitada recepcionista da pousada mexicana indaga a Joe Rolf (John Payne) sobre a necessidade da compra de suvenires, enquanto repassa a cédula de dólar da gorjeta para dentro do sutiã:

---What's a vacation without souvenirs? --- diz ele.

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