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Ter loucura por uma mulher


Conversa#60 Reclassificando Clássicos [19]

Criss Cross (Robert Siodmak, Estados Unidos, 1949) cin. Franz Planer

Steve Thompson (Burt Lancaster) retorna a Los Angeles com a veleidade de recompor seu casamento com a bela Anna Dundee (Yvone de Carlo). Mas ela já se encontra casada. E com um gângster. Esse marido, aliás, usa o fato de ser proprietário de uma famosa casa noturna como fachada para seus negócios escusos. A esperança de Thompson é a de que seu rival, Slim Dundee (Dan Duryea), veja-se enrascado no assalto a um carro-forte em que o próprio Thompson trabalha. Uma vez Dundee preso, o caminho estaria aberto para a conciliação com Anna, que aparentemente o incentiva, embora de forma deliciosamente dúbia.

Steve é a todo instante assaltado por suas memórias conjuntas com Anna. Mas a despeito disso, seu primeiro impulso é buscá-la indo a certa noitada de música latina em um clube local. A jam, com destaque para piano, flauta e percussão, é música de primeira, não apenas para dançar. Mas a mercurial Anna encontrava-se entretida como outro rapaz --- que é ninguém menos que Tony Curtis fazendo uma ponta mínima em seu filme de estreia. Nada, nem mesmo a convivência com a família ou a perspectiva de um emprego regular, afasta Steve do projeto de reconciliar-se com a ex-esposa.

Mas então eis o caso único: uma ex-esposa convertida na própria femme fatale da ocasião. E, como se não bastasse, casada com o cafetão local. É de pôr todos os amigos do retornado Steve Thompson de cabelo em pé. Especialmente por saberem quem na verdade era Slim Dundee (Duryea).

Há uma quase involuntária hipersensibilidade na personagem da garota madura, a que senta no vértice do balcão do bar frequentado por Steve, que a aproxima das personagens instáveis, um tanto intratáveis de Tennessee Williams. E especialmente quando encarnadas por Anna Magnani. Mas há mais de Tennessee Williams. Inclusive no comportamento errático de Steve e Anna. Ou na instabilidade um tanto volúvel do ambiente que os cerca. O que equivale dizer: há um naturalismo salpicando as coisas e os temperamentos, há ideias tentando ser gente e coisas. A composição dos quadros na fotografia beira a perfeição. E em raros casos um galã aparece com tão boa aparência num noir quanto Lancaster neste.

Amigos, casos de um tenente da polícia civil e de um garçom, tentam proteger Steve da volubilidade de Anna. Do perigo que representa para Steve o envolvimento de sua ex-esposa com Slim Dundee. Embora isso não pareça causar muita diferença. Os noirs seguem repletos de fatalidades. E a fatalidade no caso de Steve atende por um nome: Anna.

Anna e Steve acabam se envolvendo. Slim Dundee vai atrás da esposa na casa de Steve. Não vai sozinho. Steve então lhe faz uma proposta inusitada: assaltar a própria empresa de transporte de valores em que trabalha. Steve funcionaria como o elemento interno a facilitar a ação da quadrilha. Mas o vezo de Steve é outro: flagrar Dundee em ação, e, ao traí-lo, metê-lo na prisão, o que abriria espaço para viver em paz com Anna, outra vez.

Há uma cena em que deliberam sobre o assalto ao carro forte e à janela um bonde desce a ladeira. Imagens assim --- prosaicas como estavam se tornando em 1949 --- seriam impensáveis só uns poucos anos antes. Mas há um excesso de psicologismo, típico de Tennessee Williams que morde esse noir, tornando-o menor do que ele poderia ser. E a despeito disso, Criss Cross mantém-se como um dos clássicos do estilo. Não menos também pelo emprego de um vasto elenco de apoio, o que o aproxima --- a despeito do triângulo amoroso --- dos filmes polifônicos de Wyler, Huston, e, posteriormente, Peckinpah e Altman.

Um bando de foras da lei um tanto boêmios. Entre garrafas de cerveja, divertem-se com planos de assalto, como se jogassem. Os únicos de fato sobressaltados são Steve e Slim Dundee. Mas a apreensão de ambos passa menos pelo assalto ao carro forte do que pela libido: preocupação com a 'posse' de Anna. Esta sabe que constitui um troféu disputado por ambos. E, no entanto, ao invés de lamentar sua condição, usufrui dela como uma rainha européia ou a rainha da colmeia.

Há um excesso de melodrama. Nele, a figura de Steve subverte o estóico fatalismo da personagem do Swede em The Killers (1946), também dirigido por Siodmak. Neste Criss Cross, Steve implora para ser levado do hospital de encontro a Anna. Mas isto de nada adianta. Ou mesmo transforma-se, a despeito de Steve, em sua sentença de morte.

Por um último aspecto este filme merece ser louvado: o engenhoso modo em que dispões seu flashback. É bastante claro, mas alguém desatento pode facilmente embaralhar-se com as cartas. E não perceber os momentos ou dar com as motivações deste clássico.

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