Da necessidade que as pessoas têm de ser enganadas
Conversa#61 - Reclassificando Clássicos [20]
Nightmare Alley (Edmund Goulding, Estados Unidos,1947) cin. Lee Garmes
Mais um noir em ambiência atípica e profundo débito teatral. A primeira metade do filme se passa num circo mambembe. E o personagem de Peter Krumbein (Ian Keith) é o próprio ator de teatro arriscando-se diante de uma câmera. Ainda assim, a trama tem muito de engenhosa e adulta. Pode ser mesmo considerada uma das mais complexas do universo noir. Inicialmente, através do confuso triângulo amoroso entre Zeena (Joan Blondell), Stan Carlisle (Tyrone Power) e o sobredito Pete (Ian Keith) , um bebum de partir corações. E, depois, claro, as contrafações de Stan como alguém a meio caminho entre a charlatanice e a mediunidade.
A elaborada direção de atores se faz sentir em cenas como a do diálogo entre Pete e Stan, logo após o segundo obter para o primeiro uma garrafa capaz de consolar-lhe a noite. Os personagens caminham, detém-se, entreolham-se e falam. Entreolham-se, detém-se, falam e caminham. Seus passos estão marcados a giz, como no teatro. Goulding não parece ser um diretor especialmente interessado por fotografia, como um Ophüls ou um Tourneur. Seu negócio é a mise-en-scène. Aliás, apenas alguns diretores possuíam a real dimensão de o quanto um filme era feito pela fotografia. E mesmo alguns graúdos, como William Wyler, costumavam a entregar na mão do cinegrafista um controle quase total do aspecto visual da coisa: iluminação, enquadramentos, movimentos de câmera, etc. É o que parece ocorrer aqui.
Ian Keith pode pegar pesado na caracterização, mas comopõe um dos grandes retratos da decadência e do alcoolismo no cinema. (Menos caricato, inclusive que o Ray Milland de The Lost Weekend (Billy Wilder, 1945)). Na cena em questão, Pete (Keith) monta todo um palco imaginário, com coxia, iluminação e até fosso para a orquestra. Apenas um sujeito dotado da frieza compassiva de Stan (Power) pode conter-se num momento assim. Enquanto o grande ator alcoólatra, de extração épica, diz versos solenes entre os molambos de um circo poeira, Stan revolve a goma de mascar, e com um sorriso complacente, um pouco envergonhado, tenta evitar que o outro literalmente desabe. Mas, aqui, ocorre também e casualmente a cena determinante para a trama: Stan repassa a Pete uma garrafa de álcool puro pensando tratar-se de uma garrafa de destilado. Pete morre intoxicado.
O mundo do circo, quando longe do espetáculo, é sórdido e sombrio. Mas ganha uma mordida teatral depois de uma cena assim que é ao mesmo tempo admirável e, de algum modo, repulsiva. Admirável pela teatralidade em si, repulsiva pelo tanto que afasta --- e não brechtianamente --- a audiência da trama, convertendo o filme numa espécie de teatro filmado. Teatro filmado, aliás, de ótima extração. Mas afastando-se das luzes e câmeras. Ou seja, afastando-se de uma dimensão e de uma linguagem mais cinemáticas. De uma 'cinematicidade', pode-se dizer. Afastando-se da ilha de edição. Afastando-se do cinema. Um dos melhores exemplos disso é o Hamlet de 1948, dirigido pela própria estrela: Sir Lawrence Olivier. E chega a ser um enigma que essa versão do Hamlet, teatral como seja, conte entre os filmes favoritos de Stanley Kubrick.
Então, em boa parte a razão de Nighmare Alley ser noir talvez deva ser creditada a Lee Garmes, o diretor de fotografia. Afinal, ele já havia fotografado pelo menos um noir antes: The Paradine Case (1947), e irá gravar vários depois. É o caso de Caught (1949), em que é dirigido por ninguém menos que Max Ophüls, "o" diretor obcecado pela fotografia. Com se ela, e não o gesto largo e teatral, fosse a verdadeira protagonista.
De outro modo, a pontuação de Nightmare Alley é feita à antiga. Não por meio de fusões --- tão comuns no estilo noir --- porém mais através de fades. O que há de moderno nas externas, contando a vida mambembe, há de pesado na teatralidade das cenas de estúdio. Nestas últimas, o ponto de vista do diretor de fotografia (Lee Garmes) parece ceder diante das soluções e saturações mais teatrais do diretor (Edmund Goulding).
Não deixa de despertar ternura, no entanto, que uma trupe tão dedicada (e despojada) seja ameaçada não só de se apresentar, mas também de ser presa pela simplória arbitrariedade e falso moralismo de um xerife local. Certa arenga sentimental e pseudo-religiosa de Stan, para ganhar a simpatia do xerife, mais uma vez comprova o grau de comicidade que se pode surpreender em um filme fotografado no estilo noir. Após levar o xerife às lágrimas, o trambiqueiro sai correndo em júbilo. E, como em todo bom circo que se preza --- matinês à parte --- o espetáculo principal transcorre quando é mais fácil iludir: à noite. E, assim, os pequenos sucessos que acometem essa trupe de artistas anônimos e mambembes, assume o proscênio do mundo. E para o azar de Stan, ele se apaixona por Molly (Coleen Gray), a protegida do homem-músculo da companhia: o grandalhão Bruno.
A cena em que Molly e Stan contratam o casamento, com um suave tema musical soando ao fundo enquanto Bruno torce o braço de Stan, parece ter saído das páginas de Tennessee Williams. Mas oscilar entre cinema e teatro está nos genes deste clássico.
E seu protagonista, um advinhador de araque, bastante carismático, que corta seu caminho do circo mambembe aos salões grã-finos, não tardará a achar na plateia sua femme fatalle (Hellen Walker). Ela é uma psicóloga de sucesso, afetada, bem situada socialmente e de modos imperiais. O protótipo da mulher moderna, independente e ambiciosa, além de belíssima. Daí em diante, um novo filme se inicia. Mais distante da contagiante inocência do universo circense.
Porém tudo sem desgarrar-se desse estranho divórcio: uma atuação à antiga e teatralizada diante de um câmera inquieta e moderna. Helen Walker não é uma grande atriz --- embora esteja longe do contrário. Certamente é uma das atrizes mais belas a se propor desde as telas de Hollywood na era do filme noir (1941-1958). E a frieza de Stan em certas cenas, como na que recebe os antigos colegas circenses, pode compor um mosaico suficientemente rico da alma humana.
Há uma trinca de instâncias estimadas pelo estilo noir no coração de Nightmare Alley. A primeira delas é o fatalismo. Esse fatalismo é proposto na forma das cartas de um tarô puxado por Zeena. A segunda é o forte vínculo com a psicanálise. No caso, Lilith Ritter (Walker), a femme fatale, é psicóloga de profissão. A terceira é, sem tirar nem pôr, a própria femme fatale, encarnada por Ms. Ritter, uma mulher que ressuma a perdição de um homem, desde a primeira vista. (E mesmo de um aparentemente astucioso: um trambiqueiro passado na casca do alho).
O divórcio entre o teatro e o cinema, tensão maior neste noir classudo, se faz patente no instante em que Zeena volta para catar o tarô esquecido sobre a mesa de Stan e Molly (Gray). As previsões haviam sido ominosas. Stan, agastado, tinha insultado seus ex-colegas mambembes que passavam em visita, depois de muito tempo. Mas ao abaixar-se para recolher a única carta caída no piso, Zeena diz tratar-se do Enforcado, a carta que decreta o exício de alguém. Mas, então, dizer é algo da ordem do teatro. Num filme, coisas são vistas.
O fato de Stan Carlisle (Power) tornar-se uma espécie de médium quase a despeito de si o torna, como personagem, muito próximo de outra, controversa personagem do cinema: o Lancaster Dodd de The Master (Paul Thomas Anderson, 2012), vivido por um dos mais finos atores de sua geração: Philip Seymour Hoffman.
Não poucos pastores da Igreja Universal, da Assembleia de Deus, de todos esses novos-ricos neo-pentecostais da fé iriam, num raro momento de sinceridade, identificar-se com Stan Carlisle. Ele parece uma personagem desenhado para encarná-los, na medida --- ainda que as circunstâncias e o entorno histórico sejam diversos.
Nightmare Alley, com suas boas incongruências, esplêndida fotografia, e espetacular elenco de apoio --- onde destacam-se as cintilantes atuações de Coleen Gray, Joan Blondell e Ian Keith --- pode figurar em qualquer lista de melhores noirs já produzidos. E se fica tentado a pensar como um ator com a versatilidade de Power não nos deixou mais filmes como este.
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