Breaking bad
Conversa#64 - Reclassificando Clássicos [23]
The Breaking Point (Michael Curtiz, Estados Unidos,1950) cin. Ted D. McCord
No universo noir, Humphrey Bogart é a ira; Mitchum, o tédio; Garfield, a apreensão. De todos, no entanto Garfield é o que mais se aproxima do perfil do homem comum, sem qualquer traço especial de heroísmo, altivez ou beleza. É movido por uma aceitação da vida, legítima, comovida, não entediada, que chega a ser quase estóica. Embora isso não queira dizer que não trave graves batalhas contra o destino. Em seu semblante inscreve-se apreensão. O cansaço de ter de faturar pouco e sem estabilidade para manter família. Nesta segunda adaptação do To Have and Have Not, a condição de perdedor exemplar que não se dá por vencido também se faz presente. A do lobo mais solitário, apesar da presença de uma esposa dedicada e duas filhas adoráveis.
A ética estoica, tão importante para a economia psicológica dos personagens de Hemingway, encontra em Garfield uma encarnação estável. Esse estoicismo é uma digna resposta a tempos difíceis: a guerra e, antes dela, a depressão dos anos 1930. É algo que tenta mascarar-se sob o cinismo. Tanto desejo (yearning) de voltar a tempos melhores somado a uma funda mágoa amorosa não podem ser entregues ao espectador sem mediações de defesa, sob pena de tornar unilaterais, um tanto patéticas essas personagens. Fatalismo e cinismo são defesas de um coração magoado.
To Have and Have Not é aquele que Hemingway pessoalmente considerava seu pior livro. E, ainda assim, foi adaptado três vezes para a tela em menos de quinze anos. Os títulos diferem: To Have and Have Not (Howard Hawks, 1944), este The Breaking Point, e The Gun Runners (Don Siegel, 1958). Isso conta muito da profusão do cinema. Pois mesmo que o intervalo não seja dos mais auspiciosos para a sétima arte, que sofria a cerrada corrência da ascendente televisão, ainda temos dentro dele o ano de maior plateia nas salas estadunidenses: 1947. Depois daí, ladeira abaixo, em termos de público.
Mas o mais instigante é que os três filmes sequer sejam parecidos. Numa primeira vista, assomam bem distintos. Cada um tem seus pontos de atração e de repulsa, e embora o primeiro seja o mais incensado por crítica, público e conte com astros do porte de Bogart, Bacall e Walter Brennan; os outros dois não ficam atrás. E pode-se dizer mesmo que em vários aspectos The Breaking Point talvez proponha mais questões e aproxime-se mais do espírito, algo cínico, do livro de Hemingway que o filme de Hawks. E se isso vale para esta segunda versão, muito deve ser creditado a John Garfield, Phyllis Thaxter e Patricia Neal. Thaxter como Lucy, a esposa empenhada, merece particular menção. E Patricia Neal emprega seu inusual talento ao nos propor uma mulher cujo extremo refinamento é indissociável de certa vulgaridade. Daquela boa malandragem, fruto de experiencia, e que está empenhada em fazer as coisas certas.
O esgotamento de Harry Morgan (Garfield), o esforço que faz para manter a família coesa, com pouco crédito na praça e pouco céu plácido no horizonte, é verdadeiramente medonho. Ainda mais quando se sabe que seu trabalho envolve um risco que tem tudo a ver com uma das questões mais candentes do presente: transportar imigrantes ilegais --- no caso, um grupo de chineses --- a alcançar a Califórnia americana a partir do México. Não é trabalho que faça de bom grado ou de modo altruísta. Mas Morgan é do tipo que se empenha no que faz, a despeito da ilegalidade da empresa.
Antes de ter de lançar mão desse expediente, no entanto, ele havia levado a alto mar e depois ao México um próspero empresário, pescador de marlim nas horas vagas, Mr. Hannagan (Ralph Dumke). Nessa jornada, acaba de algum modo e involuntariamente encantando a amante de Mr. Hannaghan, Leona Charles (Patricia Neal), uma beldade espirituosa e vívida. De um jeito encabulado, Harry cita a esposa e declara-se não muito disposto a pular a cerca. Leona se diverte um tanto com um tipo assim:
---You're kidding. --- diz ela, com seu acento sulista.
---Nah.
---You're one o'those. I don't meet many --- diz com elegância cortesã e divertida.
Depois, já diante do amante, ela se despede de Morgan com despondência:
---Thank you for nothing.
Morgan é passado para trás por Hannagan, o amante de Leona. Este retorna aos Estados Unidos de Avião, sem quitar as despesas com o barco e os dias de pesca esportiva. Calote. De brinde, deixa a amante pelo caminho. E é então que Morgan decide contratar com Duncan (Wallace Ford), um advogado que lhe havia proposto o transporte de imigrantes clandestinos como forma de faturar um troco. Mas as coisas não ocorrem exatamente conforme o combinado. E há muitos sobressaltos por diante.
Por todo lado onde Harry e Lucy Morgan(Thaxter) caminham em Newport, há um garoto tocando um tema plangente no acordeon. A fotografia é desmedidamente graciosa. Boa parte em locações: píeres, trapiches, ancoradouros.
Num determinado momento, quando Harry chega um pouco bêbado e falante em casa, suas duas filhas pequenas sentem vergonha do pai. Talvez seja o momento mais humano da trama junto com a cena final. E também o que melhor prefigura a verbosidade e vitalidade de um ator e realizador que, à sua maneira, constitui a continuidade de Garfield: Cassavetes -- aqui, também desdobrado em seus alter egos: Ben Gazzara, e sobretudo Peter Falk.
Há ao final um excesso de concessões à ação e ao melodrama. E não se pode esquecer que Morgan é quem contrata seus mais sérios apuros, ainda que em desespero, e com o barco hipotecado. E seus mais sérios apuros afetam outros, e eis por que a trama fecha com uma criança sozinha, sem explicações, num ancoradouro. E não há retorno ou respostas às suas indagações. Ou, ainda pior: ninguém demonstra o menor empenho em respondê-las. Ou a menor empatia.
Poucos filmes conseguem pôr em cena dramas familiares com a perspicácia deste. Há um esforço tremendo da parte da mãe, das filhas e, a seu modo, de Morgan para viverem em família. Darem certo. Vingarem. Não desgarrarem-se vida afora. E também nisso não reside forte dose de heroísmo?
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