Porta híbrida
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Conversa#65 - Reclassificando Clássicos [24]
Don't Bother to Knock (Roy Ward Baker, 1952) cin. Lucien Ballard
Este conto sobre a instabilidade mental de uma babá (Marilyn Monroe), cuja situação vulnerável desperta comprometimento e cuidado num homem absorvido consigo mesmo (Richard Widmark), parece nunca atingir o alvo. Ou seja, a atmosfera adequada, certa verossimilhança. Quase não se sente, de fato, os mal-estares da trama. O trauma da garotinha involuntariamente maltratada (Donna Corcoran). Ou a dor e repulsa de sua mãe (Lurene Tuttle). A tentativa de criar uma sensação de claustrofobia --- toda ação transcorre num hotel, em apenas uma noite --- naufraga diante de um ambiente organizado, civil, confortável, bem iluminado, limpo e, guardadas as proporções de época, até humano. A excelência do elenco parece ser inversamente proporcional à falta de ambiência.
A trama é mínima. Envolve além dessas personagens, os pais da criança (Lurene Tuttle e Jim Backus), um ascensorista(Elisha Cook Jr.), que é tio da babá em crise, além de um casal de idosos (Verna Felton e Don Beddoe), que, de algum modo, pressente: algo de errado está a se passar naquele quarto. Além desses, há também a namorada (Ann Bancroft) do homem que sai de seu egoísmo em ajuda da Babá. Bancroft, no caso, é crooner no bar do hotel, e tem seus drinques servidos por um espirituoso bartender (Willys Boucher), que se encontra nas filas daquele filósofo homem-comum, o que acresce charme e witty aos roteiros de Hollywood.
Visivelmente, o filme parte de um impulso bem intencionado: abrir protagonismo para o mundo feminino. A personagem central é uma babá (Monroe), a criança cuidada por ela, uma menina (Corcoran). Há ainda a mãe da criança (Tuttle), a velha senhora bisbilhoteira (Felton), além, da cantora (Bancroft), para não falar das telefonistas e de uma fotógrafa do hotel. Percebe-se à volta, um mundo em que mulheres têm um crescente protagonismo, e isso não deixa de ser interessante. Mas, talvez pelo ineditismo desse primeiro plano feminino, saindo dos papeis usualmente reservados às mulheres no cinema de então --- mães, donas de casa, secretárias, faxineiras --- parece difícil lidar com ele. E isso conta entre as não poucas razões que fazem o filme naufragar.
Todo filme é um híbrido: pode ser um western com ambiência de noir. Ou do contrário um thriller com códigos do western e pitadas de melodrama. Pode ser um melodrama com retoques de terror. Uma comédia de costumes com sobretons negros? Enfim, a importância do gênero evidencia-se neste momento. Certamente há filmes inclassificáveis: dramas existenciais que não poderiam ser resumidos a um ou outro gênero, porque derivam de várias fontes. Mas sabe-se que qualquer filme herda algum convenção ou formato de filmes anteriores. De algum modo, o espectador o classifica. Automaticamente. Mesmo quando sabe que essa classificação é algo um tanto protocolar ou provisória. E nisso o gênero é mais um esteio da inscrição do filme na história prévia (e, claro, também posterior) do cinema, que qualquer outra coisa. Através do gênero, podemos divisar melhor a relação de um filme com outros filmes, com todos os outros filmes que não ele.
Ora, este é precisamente o problema de Don't Bother to Knock. Apesar de a própria atriz considerá-la uma de suas melhores performances, Marilyn Monroe não convence na pele dessa babá desorientada, que recém-saiu de uma casa de repouso, porque tentou suicidar-se após a morte do namorado, piloto de caça na Guerra. Por sua vez Richard Widmark muda de um sujeito cínico, egoísta para alguém extremamente solícito e cuidadoso num piscar de olhos. (Literalmente da noite para a noite, porque não chega a amanhecer no filme). Inclusive com inusual destreza para lidar com crianças. Essa volubilidade, essa falta de verossimilhança pode estender-se praticamente a todos os personagens dessa tentativa de se criar um thriller psicológico tomando com centro certo universo da mulher. Quer dizer, talvez seja isso: um thriller psicológico, pois é árduo classificar este filme. E não exatamente pelo lado bom dessa questão.
Quando ao vestir-se com as roupas, envergar as jóias, borrifar-se com o perfume dos patrões, um avião passa, e Marilyn Monroe ouve seu ruído, ela aproxima-se das persianas e pode-se perceber uma lágrima. Mas não há aqui a atmosfera densa de mistério e desorientação que se pode plasmar num Rosemary's Baby (Roman Polanski, 1968). Ela é tão-só uma mulher extremamente bonita com uma lágrima no olho, perto de uma persiana.
Talvez a melhor cena ocorra no momento em que, no auge de sua desorientação, ela desce do quarto para o lobby do hotel. Sua postura no elevador, o modo como conversa e se porta diante de um ascensorista constrangido ameaça fazer o filme engrenar. Assim como também quando ela, moça do subúrbio, vê-se sob as luzes do hotel de luxo e esboça simplesmente apanhar as primeiras gomas de mascar postas num stand sobre o balcão de uma espécie de tabacaria. Mas estes são momentos isolados de uma trama inconsistente, e já encaminhando-se para seu desfecho. Esse enredo, claro, deve nos fazer pensar também sobre sua fragilidade, também no plano meramente formal.
Um detalhe importante é que, embora aparecendo relativamente pouco, a personagem de Bancroft é decisiva. É que na verdade toda a trama do filme se dá em função dela. Quer dizer, de ela chegar a conclusão que seu ex-namorado (Widmark) tem qualidades humanas de sobra para ser bom marido. Como vemos, até mesmo esse desfecho não deixa de tornar o filme ainda mais confuso. Ou seja, ele repõe como central para uma mulher a questão do casamento. Ou por ela define a razão de ser de suas heroínas.
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