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Delinquência social


Conversa#66 - Reclassificando Clássicos [25]

Knock on Any Door (Nicholas Ray, 1949) cin. Burnett Guffey

O momento em que Andrew Morton (Humphrey Bogart) considera o perfil psicológico dos jurados é de uma desfaçatez exemplar. Na condição de advogado de defesa de um um jovem delinquente, Nick Romano (John Derek), acusado de matar um policial, ele parece nos dizer: "júri, modo de usar". A presença de Bogart, aliás, é o que faz a diferença nesse subgênero do thriller policial: o filme de tribunal. E, evidente, sendo de Nicholas Ray teria de envolver algo vinculado à delinquência juvenil, pois este é seu motivo, seu topos mais recorrente.

Isso vem de um tempo em que bem sucedidos advogados criminais só tomavam como clientes aqueles que supunham ser inocentes. Era uma era, a despeito do interminável cinismo de Bogart, inocente e conciliadora, sob esse aspecto. Qual precisamente? O de homens terem divergências políticas, ideológicas, étnicas e, ainda assim, reconhecerem-se como homens. Certo, houve o macartismo. Mas o macartismo era identificável. Não uma presença disseminada socialmente hoje em dia, onde é muito mais difícil lidar com uma caça às bruxas em que os caçadores são parte considerável da população que tem acesso às redes sociais. E onde a intolerância passa longe de ser uma exclusividade da direita.

A preocupação com o social era também uma das pautas de Ray. E evidentemente há um exagero em se tomar um indivíduo por classe. Ou no considerar todo ato criminoso em débito com a condição de classe do praticante. Se assim fosse, ricos não praticariam crimes. E, no entanto, são justamente os ricos que mais os cometem --- o que não quer dizer que não existam ricos honestos. Mas Ray, em parte, ganhou a sanção da esquerda, por supostamente defender essa, digamos, "hipótese social" dos crimes: praticam-se crimes porque há desigualdade social. Sim. Sem nenhuma dúvida. Mas não só.

Para construir sua hipótese social, Ray lança mão de muitos recursos. Um dos mais efetivos, o de colocar um bando de antipáticos e suspeitos do outro lado da causa. O promotor público Kerman (George Macready) é conhecido vilão do universo noir, que porta no rosto uma cicatriz, e guarda modos e gestos de uma neurose explosiva. Os sócios de Morton na banca, são dois velhos advogado afluentes e pragmáticos que insistem: ele não deve assumir o caso. Mais que em outros filmes ---They Live by Night (1948), Johnny Guitar (1954), Rebel Without a Cause (1955) --- é mais difícil sentir simpatia pelos injustiçados sociais, perseguidos ou linchados, neste Knock on Any Door.

E isso se dá porque naturalmente o filme não é sobre o jovem Nick Romano (Derek), mas sobre o experiente advogado Andrew Morton (Bogart). E o excesso de carisma em atores como Bogart previne que qualquer outra coisa num filme assome interessante. A não ser que contribua para esse reforço de carisma. É por isso que ele e Lauren Bacall se davam tão bem. Porque, apesar da usual postura de enfrentamento, de confronto de Bacall, ela não funcionava, mesmo com seu extraordinário carisma, senão para amplificar a zona de empatia e estamina de Bogart.

Neste filme, ele é o advogado aficcionado pelo xadrez. Assume apenas os casos que entende justos, e despreza os sócios, ricos e bem relacionados. Fala ao júri com astúcia e sabe conduzir com firmeza o inquérito diante de Kerman (Macready), o promotor. Conhece a contento o contexto do réu.

Aliás, um dos maiores problemas deste filme reside nesse contexto. Ele é excessivamente votado ao melodrama por Ray. Desde a modéstia do lar dos Romano até o fato de o pai de Nick haver morrido injustamente na prisão. Ou de Morton os haver ajudado financeiramente até a partida para a guerra. Não há, portanto, como não simpatizar com a família, independente de Nick haver puxado ou não o gatilho que matou o policial. Além disso, o bairro em que moram é um dos mais anômicos e violentos no país. Rapidamente o garoto sente-se cooptado pela violência-ambiente e afasta-se dos valores da mãe, católica, que ainda se expressa mais em italiano que em inglês, e reclama do filho não ir mais à missa.

Ao que parece, John Derek estava a ser preparado por Ray para ser um astro das dimensões de Brando, James Dean, Montgomery Clift ou Paul Newman. Ou, no mínimo, de um Farley Granger: emblema de inquietação ou de desajuste juvenil nos anos 1950. (E é sintomático que Brando tenha sido a primeira opção para o papel). De outro modo, uma fala de Nick Romano resume o credo desses desajustados dos 1950: ""live fast, die young, and have a good-looking corpse" ["viva acelerando, morra jovem, seja um cadáver vistoso]". Mas algo entornou o caldo. Derek tornou-se ator secundário em filmes B, ao longo da década do macartismo. Acabou optando pela direção, sem produzir nada digno de nota. Foi casado com algumas atrizes famosas, que incluem Ursula Andress e Bo Derek, a quem ele próprio fotografou para edições da Playboy, pois era também exímio fotógrafo. Ou dirigiu em filmes de menor expressão.

Descendo à filigrana, a fotografia deste segundo Ray é fantástica. Faz parte de todo uma tendência de época: mesclar estúdio com locações, muitas cenas em baixa luz (low key), contornadas ou tomadas a partir de ângulos abstrusos. Mas cá e lá isso também fica um pouco esquemático. Por exemplo, quando no quarto final vê-se um trem aproximando-se de uma estação num plano documental, extremamente bem conseguido em chiaroescuro (há muita contraluz neste filme). Porém no plano seguinte que responde pela continuidade espacial do primeiro, percebe-se que há um excesso de assepsia (e até uma profusão de luz) na "estação", no momento mesmo em que os passageiros deixam o vagão e atravessam a plataforma diante dos gângsters. Ou seja, de repente passou-se da rua ao estúdio. Mas já no plano seguinte, volta-se de novo à rua, com uma cabine de bilhetes real, não tão asséptica assim, com uma colunata desgastada e suja, pelo tanto que foi tocada pelos transeuntes: é onde se dará o assalto.

No momento seguinte, o que Nick e seus comparsas saem correndo com o produto do roubo, ele escorrega e acaba levando um tombo do alto de um mezanino. É possível a um olho treinado perceber a rigidez de um boneco de pano no plano de junção, intermediário. Acontece. Mesmo com os melhores fotógrafos. Os melhores editores. Os melhores diretores. E na época de ouro da renovação fotográfica do cinema.

Tornando à trama de Knock on Any Door, sua estratégia narrativa ancora-se na presença de Morton diante do júri e de flashbacks de Nick a partir da peroração do advogado. Nesses flashbacks, vemos Nick metido em blusão de couro, envolvendo-se em pequenas contrafações pelas quais passaram toda uma geração: furtos, venda de objetos roubados, vadiagem, vandalismo, embriaguez e desordem, jogatina, passagens por reformatórios sórdidos e insalubres, sob o sadismo de carcereiros inescrupulosos. Depois esses 'tough boys' encontram uma bela mulher, que não só tem um rosto angelical, mas o dom de demovê-los de uma vida criminosa. Elas são um ideal de perfeição. No caso, Nick encontra Emma (Allene Roberts) --- que de fato tem uma expressão angelical.

Barry Kelly, ator de tipo, o compenetrado Juiz Drake, fará um policial corrupto, de modo ainda mais convincente, em The Asphalt Jungle (John Huston), no ano seguinte. Isto para dar ideia da excelência do elenco de apoio. A atmosfera do julgamento é absurdamente bem conduzida "dentro" dos limites da linguagem do cinema. O senso de timing, a edição, os ângulos de tomada. Logo, não seguem à toa todas as loas entoadas a Ray por mestres como Godard, Truffaut, Scorsese e Wenders.

Porém, para mais pasto à reflexão, o próprio Morton só se interessa de fato pelo Nick delinquente para fazer uma média com a esposa, charmosa assistente social, Adele (Candy Toxton), que ele conheceu nada menos que na casa dos Romano. Além do que, Humphrey Bogart carrega um permanente ar de delinquência adulta. Ao ser instado pela mulher a ajudar Nick, ele reage como alguém coagido, chantageado, subtraído de um de seus maiores prazeres: a dança. Logo, ele tem que levar a mulher para a pista de dança a qualquer custo. E lhe diz:

---I'll be a father to him. I'll wipe his nose and brush his teeth. I'll buy him a bicycle. I'll take him camping. I'll push him in a baby carriage. I'll be a mother to him. How's that? --- e, então, ele arrasta a moça já sorridente para o salão de dança. Que moça não se deixaria arrastar?

Em outro passo, Adele Morton contempla embevecida o casal Romano, recém-casado, a evoluir na pista de dança:

---I hope it work it out.

---Me too. But there have been few miracles since the Sixteenth Century --- responde Bogart.

Há um dado instante, pode-se pensar que Ray ameaça transformar a vida de um filho de dago numa espécie de saga. Logo, sobra carisma, melodrama, maniqueísmo e uma ideia fixa, sem muita serventia. Faltam ainda densidade e paradoxo às personagens nesse esboço de delinquência juvenil. Sem falar que Derek não é propriamente Dean, Brando ou Clift. E, assim, Knock on Any Door apenas prenuncia o que está por vir. A fotografia é de Burnett Guffey. A edição, de Viola Lawrence. A trilha musical, de George Antheil.

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