top of page

Mira de aluguel e modernidade fotográfica

...

Conversa #67 - Reclassificando Clássicos [26]

This Gun for Hire (Frank Tuttle, Estados Unidos, 1942) cin. John F. Seitz

A indecifrabilidade no rosto de Alan Ladd em seu filme de estréia o torna um dos mais fantasmáticos pistoleiros da era noir. A cena inicial em que fulmina o químico Albert Baker (Frank Ferguson) e sua secretária (Bernadene Hayes) depois de degustar cookies é um marco do estilo. E o modo como está fotografada e editada, uma aula de cinema. E de minimalismo.

Não é de estranhar, pois a fotografia é um dos momentos gloriosos de John F. Seitz. This Gun for Hire atinge uma modernidade fotográfica como em 1942 só Gregg Toland e Nicholas Musuraca conseguem rivalizar. Haverá outros momentos assim para Seitz: Double Indemnity (1946), Five Graves to Cairo (1943), Sunset Boulevard (1950). Os três em colaboração com Billy Wilder. Fala-se em uma trindade de DF's no cinema noir clássico: John F. Seitz, Nicholas Musuraca e John Alton.

Dos três, Seitz foi o mais reconhecido em vida. E possivelmente o menos irregular. Mas seguramente trabalhou com orçamentos maiores que os outros dois --- e, em especial, do que Alton. Musuraca soube combinar a baixa iluminação (low key) com um inimitável senso de lirismo composicional; e Alton foi sobretudo um iluminador capaz de driblar habilmente os limites de orçamento ao lançar mão de menos sets de luz que os dois primeiros. Contam também que o senso de auto-promoção de Alton contrastava com a discrição de Musuraca. (Só para tirar os noves fora disso, Alton publicou um manual de cinematografia --- Painting With Light (1949) --- que é reeditado até hoje. Isso, a despeito de o livro ser, claro, completamente voltado para a gravação de imagens em película - e em preto e branco - e hoje quase todo diretor de fotografia iniciante trabalhar com o suporte digital e em cores).

Talvez em This Gun for Hire, a fotografia de Seitz ainda não esteja tão imersa na sombra aveludada, puxada para um leve anil, quanto o é quatro anos depois, em Double Indemnity. Porém sua preocupação com a composição é já obsessiva. O controle do quadro, milimétrico. E há esse momento em que a polícia vai em busca de Raven (Ladd) na pensão barata em que vive.

Após trancar num quartinho da recepção, o proprietário e a zeladora, Raven observa se vem mais alguém pela janela entreaberta. Ora, há uma cortina recolhida à janela. Dessa cortina pende um puxador, que desce em fio até uma diminuta argola. O passante, ao descer da calçada oposta coincide, então, sua cabeça exatamente com a argola do puxador de cortina. Isso passa recibo do quanto o movimento é harmônico e intensamente sondado e monitorado dentro do quadro de Seitz. Isso responde pelo momento em que um puxador de cortina transforma-se em uma forca.

Mas ele também joga com olho do espectador mais atento em outras ocasiões. Por exemplo, ao saltar do trem esgueirando-se da polícia e levando a cantora Ellen Graham (Veronica Lake) como refém, eles acabam dando num parque de onde é possível enxergar o edifício da Prefeitura de Los Angeles --- talvez o edifício que mais aparece nos filmes do ciclo noir. O detalhe é que, atrás de ambos, ao centro do quadro, há um balanço feito de pneu que muito se assemelha ao puxador de cortina. Só que agigantado. E ele também está ao centro do quadro.

Há, no entanto, um contraste notável entre as locações, escolhidas a dedo para pré-enquadramentos, e as cenas de estúdio. O exemplo da primeira é um galpão abandonado, logo após o parque à saída da estação ferroviária de Los Angeles. Como exemplos de cenas de estúdio, temos o quartel general da Nitro Chemical ou o clube de espetáculos de propriedade do gângster Williard Gates (Laird Graiger). As locações tornam o filme real e humano, por contraposição à assepsia do estúdio, onde tudo parece transcorrer em um musical de Hollywood.

Outro aspecto visual marcante ocorre nos planos do começo. É a paisagem de San Francisco. Ela destaca-se por trás dos painéis de vidro da janela de um café em que o pistoleiro Philip Raven (Ladd) reúne-se com o intermediário de seu contratador, Gates (Graiger). O sujeito, pastoso e finório, como todo lugar-tenente, lhe entrega um envelope recheado de cédulas. Mal sabe Raven: a numeração das cédulas já estava na posse da polícia. Ou seja, ele fora previamente traído por quem estava a pagar o "serviço":

---How do you feel when you're doing this? --- pergunta o gângster roliço, com a sobremesa gotejando na ponta da colher, enquanto aponta para a manchete de jornal que dá conta do assassinato do químico.

---I feel fine. --- diz Raven. Aqui, claro, acresce-se mais concisão psicológica.

Mas note-se, uma vez mais, a presença do puxador de cortina ao centro do quadro:

Gates deixa a reunião com Raven no café para seguir direto à delegacia. Ele reclama de um assalto à sua firma de química. Isso se deu há já uma semana, blefa. O detetive de plantão informa-lhe, então, que nada foi apurado até o momento, porque nenhuma nota dos 20.000 dólares foi passada. O detetive não se abstém de comentar também o quanto a recompensa para quem reaver o dinheiro, que é de 5.000 dólares, um quarto do total, parece inusualmente alta. Espertamente, Gates pagou a Raven com notas de 10 dólares.

Há um recorrente intercâmbio entre gângsters e artistas, no universo noir. Com frequência, os primeiros são mecenas. E é o que ocorre quando Gates vai ao espetáculo de Ellen Graham (Veronica Lake), uma cantora e dançarina de cabaret que, por acaso, é namorada do detetive (Robert Preston) que investiga o caso do assassinato do químico. Gates quer financiar uma turnê da cantora a Los Angeles, onde possui um clube. Mas, já com um encontro marcado para discutir os detalhes da turnê, Ellen Graham (Lake) é conduzida inesperadamente a reunir-se com um senador (Roger Imhof). Este lhe informa que Gates e sua firma estão sob investigação, pois são suspeitos de alta traição. Até aqui é onde se pode contar sem tornar-se um inconveniente colecionador de spoilers. (Isto, para os que se ligam em enredos, uma vez que há os que estão bem mais interessados nos modos como se contam os enredos --- o que sem dúvida é postura que ensina mais).

A aterradora modernidade fotográfica deste filme se faz presente até hoje. This Gun for Hire marca a estreia de Alan Ladd, o pistoleiro fleumático, de rosto angelical, gestos mínimos. Há uma cena que é de um cinematismo absurdo. Ao descer as escadas, após eliminar um sujeito e sua secretária, Raven depara-se com a mesma criança paraplégica nos degraus, a que lhe saudara à chegada. Ela lhe pede que devolva a bola que lhe havia escapado das mãos, e descido para o hall. Por um segundo e fração lê-se no semblante de Raven (Ladd): a menina escapou por pouco de morrer.

Ladd media 1,68 m, mas rivalizava com os gigantes do estilo noir, como Robert Mitchum, Sterling Hayden, Burt Lancaster e Robert Ryan. Originalmente o roteiro lhe reservava apenas o papel do vilão que contrapunha-se ao investigador vivido por Robert Preston. Mas após o início das gravações, o roteiro foi reescrito. E coube a Preston desaparecer na trama às expensas da personagem de Ladd. É que sucessivamente a personagem de Ladd, apesar de vilã, ocupou mais e mais espaço em detrimento da de Preston. E, logo, This Gun For Hire, será apenas o primeiro, de uma série de filmes a contrapor Alan Ladd a Veronica Lake.

  • Black Facebook Icon
  • Black Twitter Icon
  • Black Pinterest Icon
  • Black Instagram Icon
FOLLOW ME
SEARCH BY TAGS
FEATURED POSTS
Verifique em breve
Assim que novos posts forem publicados, você poderá vê-los aqui.
INSTAGRAM
ARCHIVE
bottom of page