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Lances contra o amanhã


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Conversa#68 - Reclassificando Clássicos [27]

Odds Against Tomorrow (Robert Wise, Estados Unidos, 1959) cin. Joseph C. Brun

Dependendo do grau de aficção do espectador a Orson Welles, pode-se decretar o final do ciclo noir clássico de dois modos. Se o espectador for um fã incondicional, este final se dá com Touch of Evil (1958). Se for um fã mais moderado, irá cravar este Odds Agains Tomorrow (1959). E, aqui, é inútil prospectar qual dos dois filmes estaria mais ao gosto da sensibilidade posmoderna: pois ambos bem que estão. Cada um a seu modo.

Contra Welles, pesa o exagero na caracterização e certo e excessivo clichê cultural de hábito. (Por exemplo, seu sotaque irlandês fake em The Lady From Shanghai (1947)). Por sua vez, sobra cinema por todos os lados. Quer dizer, arte cinemática: triques fotográficos, estratégias editivas, inesperadas soluções de som e imagem; ângulações de câmera abstrusas, de fazer inveja aos 'novos turcos' franceses; câmeras na mão, muitas ideias na cabeça; experimentos com o som, etc. Welles é quase um gênero a parte. E decretar o fim do noir com Touch of Evil não seria exagero.

Depois de Welles parece que o estilo conhece um esgotamento, que segue junto com o final de toda a gloriosa trajetória de cinematografia em preto e branco, para o beco sem saída da homenagem e da citação. E, embora haja suspiros pontuais, como Odds Against Tomorrow (1959), The Hustler (1961), The Misfits (1961), The Manchurian Candidate (1962), Hud (1963), Shock Corridor (1963), The Pawnbroker (1964), tudo já recende mais a sobejo, a despeito da evidente excelência individual desses filmes, alguns dos quais, como o segundo, o terceiro e os três últimos, nem sempre considerados noirs ortodoxos. Por ora, então, fiquemos com Odds Against Tomorrow. Ocupados menos com seu lugar no panteão do que com o filme em si.

O filme abre numa gloriosa manhã de sol, durante o inverno. Vemos Robert Ryan descendo uma colina, em Nova York, e uma fila de crianças serpeando em atropelo à volta dele num amplo passeio. Buscam cruzar a rua e alcançar o parque. A trilha musical não passa de nacos de acordes largados ao piano. Cria um clima tenso, um pouco melancólico. Pode-se sentir frio quando Ryan atinge o lobby do Hotel Juno, depois de deixar para trás a garotinha negra que havia tomado nos braços para saudar. Mas sua saudação revela algo de estranho no tom:

---You lil pickaninny, you goin' to kill yourself flyin' like that, yes you are.

Sim. Ele é um convicto racista do Oklahoma, que teria votado em Trump de olhos fechados, e, se um pouco mais informado, entenderia que comunistas comem criancinhas e Lula resume todo o mal que se abate sobre a maldita América Latina. Mas alguém como Earl Slater morreu antes de Trump e de Lula. E nós temos de continuar vivos e pensar em soluções para tais impasses. É nosso dever de casa.

No Hotel Juno, Slater (Ryan) encontra Burke (Ed Begley), um policial aposentado que vive sozinho. Burke está planejando o roubo a um banco em Upstate New York, junto com um terceiro comparsa. O problema é que esse terceiro comparsa é negro, o que fere o código de trabalho do racista Slater (Ryan).

Slater, de resto, sente-se incomodado por ser sustentado pela amante, por uma mulher, Lorry (Shelley Winters); por outro lado não tem escolha. E chega a ser interessante como o fato de ser sustentado por uma mulher torna esse racista precipitadamente posmoderno --- segundo os códigos de moralidade tacanha de hoje em dia --- não fosse o fato de abusar dela.

Talvez a modernidade de Odds Against Tomorrow esteja onde menos a sociedade americana quer. Ou seja, no fato de num filme do final dos anos 1950, ainda ser quase senso comum, admissível, que alguém se postasse diante dos negros da forma inflexível e verbalmente repugnante como o faz Slater. E que, para nosso escrutínio em 2017, isto esteja registrado no filme:

--There's only one thing wrong with it --- diz ele. -- What? -- diz Dave Burke. --You didn't say nothin' about the third man being a nigger.¹

Muito diferente é o segundo comparsa de Burke, Johnny Ingram (Harry Belafonte). E pode-se sentir pela reação do ascensorista negro do prédio de Burke. Ingram faz o ascensorista gargalhar umas poucas de vezes no espaço de alguns andares acima. O mesmo espaço em que Slater (Ryan) e o ascensorista não passaram de um gélido silêncio.

Ingram ao contrário de Slater, é um malandro bonachão e melhor sucedido: veste-se bem, cruza Manhattan para cima e para baixo num brioso Porsche. Mas também andou exagerando no Jóquei, e apostando nos cavalos errados. Isso chegou aos ouvidos de Burke, ansioso por recrutar os mais aptos mal-feitores para o assalto à agência bancária do interior. E, claro, se eles estão em apuros financeiros e cobrados pelos capos da máfia, fica mais fácil e em conta recrutá-los. Como se não bastasse, Ingram é negro numa sociedade em que o racismo era uma instituição não só tolerada, mas em alguns estados até incentivada.

Os dois comparsas são muito diversos. Mas o mais significativo é que são humanos. Isto é, são detidos à porta de Burke por um só argumento: a cifra que lhes cabe no assalto: 50.000 dólares. Ponto. Parece muito didática, quanto à força da grana, essa trama. Pode-se ser um racista estúpido e um misógino cruel. Pode-se, de outro modo, ser um afro-americano boa praça e bem sucedido, pai dedicado, além de músico talentoso. Mas, se há no horizonte a possibilidade de tirar muito dinheiro sem fazer esforço, esses dois homens tão diferentes irão simpatizar com a mesma ideia. Irão colaborar em torno do mesmo plano. Irão se expor ao mesmo risco.

A ideia de ganhar dinheiro fácil --- embora arriscando a própria pele --- é maior que as diferenças entre ambos. Mesmo que essas diferenças se manifestem depois. De algum modo. Porém, num primeiro momento, são perfeitamente acessórias diante da ideia motriz e rentosa, embora temerária. Isso faz pensar o quanto o universo do jogo e do assalto estão próximos. A lógica é quase a mesma, ganhar muito dinheiro abolindo o tempo e correndo um risco miserável.

O que se sucede é o típico Heist Film (também conhecido como 'caper film' --- ou Filme de Assalto). Isto é, o filme em que se pode acompanhar as etapas de planejamento e execução de um roubo mais planificado. O sub-gênero ganhou força no início dos 1950, justamente com The Asphalt Jungle (John Huston, 1950). E teve vários luminares ao longo dessa década: The Ladykillers (1951), Kansas City Confidential (1952), Rififi (1955), The Killling (1956), Big Deal on Madonna Street (1958), The League of Gentlemen (1960).

O Porsche de Johnny Ingram (Belafonte) desliza pelas largas avenidas de Manhattan como uma flecha. Na verdade, ele não se deixa convencer tão rápido quanto o sulista Slater. Mas Burke (Begley) sabe: é só uma questão de tempo. Por isso foi tão ágil em lhe pedir uma carona pro Centro. Há gente que precisa ser convencida numa conversa peripatética, contemplando uma paisagem erguida pelo dinheiro, e os confortos e luxos por ele comprados.

Aliás, alguns dos melhores planos deste filme se dão quando Burke e Slater chegam à pequena cidade de Melton --- provavelmente uma alusão a Milton, NY. As fábricas, as ruas estreitas, limpas. Os carros e as linhas férreas por toda parte. O Hudson, que mais adiante no seu curso irá desaguar, trágico e poluído, no mar, à altura do porto de Nova York. As pessoas em seus afazeres de cidade da província. E, claro, a agência do banco.

Naturalmente a realidade das ruas é vista por malfeitores em filmes noir pela mediação de persianas. E é assim que a dupla de assaltantes observa a Main Street de Melton, pela primeira vez, quando vão estudá-la. E então vemos um garçom portando o lanche do vigia noturno do banco. O planejamento do assalto segue de vento em popa, na mente de Burke, o ex-tira. Ele o explica a Slater, com a propedêutica obsequiosa do professor. E não deixa de ser revelador que, nessa etapa envolvendo maior racionalidade e "iluminismo", o terceiro elemento, o negro, esteja ausente. Pois os outros dois comparsas (Burk e Slater) seguem à risca o clichê racista de que negros se saem melhor em trabalhos braçais que intelectuais. (Ainda que, no filme, Johnny Ingram, seja o mais refinado e intelectualmente capaz dos três malfeitores).

Mas o detalhe é que o garçom que diariamente porta o lanche para o vigia do banco é negro. E é aí que entra Ingram, o bonachão, a personagem de Harry Belafonte. Mais cedo ou mais tarde, premido pelos juros das dívidas de aposta, Burke bem sabe que Ingram irá mudar de opinião. Irá procurá-lo, para saber melhor dos riscos e termos do assalto. E o sobretudo de seu prêmio. Da parte que lhe cabe, a despeito da repugnância que ele gera nos outros dois. E que é externada ostensivamente por Slater.

Ingram é, por igual, um músico talentoso e carismático. Apresenta-se cantando e tocando xilofone em clubes de Jazz, no Village. E mais uma vez fica-se na fronteira entre arte e crime --- condição posta com metronômica frequência nos filmes noir. Só que, aqui, ao invés de o gângster bancar o artista, o próprio artista acaba-se envolvendo com crime de moto próprio, premido pelas dívidas de jogo. De qualquer forma, o elo entre vida de artista e vida de bandido está proposto, como a sugerir que a distância entre ambas é estalar de dedos. (Seja por proteção numa área anômica, terra de ninguém, seja pelo fornecimento de drogas ou produção de espetáculos; o certo é que parte do mecenato dos artistas não provém de fontes "honestas e tributáveis" da grana corrente. Disso, os escritores hard-boiled bem sabem. E não seria um acaso que a máfia andasse envolvida em carreiras de tanto sucesso, como as de Sinatra e Sammy Davis Jr).

De outro, modo, Ingram trata com calculado desprezo o esbirro do gângster a quem deve dinheiro. Sujeito afetado, que se insinua sexualmente para ele após sua gig. No final dos anos 1950, finalmente temas como a homossexualidade podem ser tratados mais abertamente em filmes. Mesmo que tematizando aspectos pouco lisonjeiros vinculados à condição.

Porém, visto com lupa, até a mesmo a bonomia de Ingram (Belafonte) tem limite. A ideia de ganhar dinheiro fácil é maior que as diferenças entre ambos. Ainda que essas diferenças se manifestem depois. De algum modo. Porém, num primeiro momento, são perfeitamente acessórias diante da ideia motriz e rentosa, embora arriscada. Nesse sentido, o filme é perspicaz: manda o dinheiro; obedece o homem, rabinho entre as pernas. Seja ele próspero, bem apessoado, músico de talento e negro. Ou pobre, amargo e branco. Seja ele devotado aos seus, racista e dependente de uma mulher. Ou um policial corrupto afastado da corporação e sem muita perspectiva na vida. O dinheiro manda, eles obedecem. Não é preciso mais que 12 minutos de filme para se chegar a esse ponto.

Em outra passagem, Ingram sobe ao palco e de modo bastante misógino --- ao menos tanto quanto seu futuro comparsa branco e racista --- arruína a apresentação de uma cantora negra (Mae Barnes). E apenas por encontrar-se em 'dire straits', aos miaus por dinheiro. Mesmo caso, como já foi frisado, de Slater. Isso enriquece o filme. O torna menos maniqueísta. Nos faz lembrar que vítimas numa determinada situação podem ser algozes em outras.

Os homens da máfia vem atrás de Ingram, que deve dinheiro a um capo. Não descolam dele sequer no momento em que leva a filha ao parque de diversões --- espaço classicamente macabro no universo noir. Ingram telefona para Burke. A intenção é reconsiderar a oferta. Os 50.000 dólares são eloquentes. Os maus augúrios foram suscitados pelas carpas. Agora é questão de tempo para que os desgraçados corram o alto risco de desgraçar ainda mais as vidas dos outros e suas próprias.

A icônica Gloria Grahame diz presente como a vizinha incômoda e entediada de Earl (Ryan) e Helen (Winters). Soberba, como de uso. Uma espécie de femme fatale em low key, uma vez que Helen, uma mulher de meia-idade, insegura e emocionalmente instável, habilmente interpretada por Shelley Winters, está bem distante dessa arquetipia. E talvez haja teatro em demasia na despedida de Earl. O mesmo já acontecera numa previsível despedida melosa entre Ingram, a ex-esposa e a filha.

Mas para cometer --- e às vezes sofrer --- injustiças e crimes contundentes, é preciso estar sozinho. E os protagonistas dos filmes noir são, antes de mais nada, seres solitários, mesmo quando vivem cercados de gente. E então, os três partem para Melton. Para a execução do crime. Um segue de ônibus (como manda seu estereótipo de negro para o senso comum --- a despeito de ser o mais talentoso, mais bem sucedido, e de guiar um Porsche no cotidiano) . O outro, numa camioneta. O terceiro, num sedã, por estradas secundárias, divergindo do segundo, e fazendo de conta de que saiu para caçar. Tudo cronometrado, irão convergir na tragédia. Reúnem-se nos entornos de sempre: "os espaços da anomia". Armazéns abandonados, pátios de fábrica ou docas em desoras, beiras de rio, margens de ferrovia:

"Whatsoever thy hand findeth to do, do it with thy might", diz o letreiro edificante, lido à base de uma estátua, por Burke. Earl municia a calibre 12, e pondera se deve ou não acertar uma lebre. Ingram contempla o rio com ar soturno. A tensão está posta.

Então a paisagem ribeirinha transfigura-se. Ganha uma beleza ímpar nas imagens ao pôr do sol. As luzes da cidade e os faróis dos carros acendem. O relógio do banco bate: seis horas. O final é iminente e literalmente explosivo.

Mas pelo menos toda essa desgraceira se dá sob uma trilha musical de arrancar suspiros. Foi arranjada por John Lewis, do Modern Jazz Quartet, para um pequena orquestra de 22 componentes tocando com várias participações especiais. É padecer no paraíso.

Escolha você o final do ciclo noir: Touch of Evil ou Odd Against Tomorrow? Uma coisa é certa: apesar de o primeiro ser evidentemente mais filme, a escolha é de Sofia.

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¹Ou seja, até essa época, o racismo era institucionalizado. Prática social não só tolerada, como incentivada pela propaganda oficial em muitos estados dos Estados Unidos. Os negros não podiam frequentar determinadas escolas e universidades, locomover-se em certos ônibus, metrôs ou em áreas específicas desses veículos, na rede de transporte público, usufruir de certos espaços e serviços, casar-se interracialmente com brancos. No Novo código posturas para filmes, instituído em 1934, em Hollywood, lê-se: “miscegenation (sex relationships between the white and black races) is forbidden". Se alguém dissesse à época que um descendente de negro --- como Machado de Assis, aqui no Brasil, em 1896 --- havia fundado uma das instituições mais prestigiosas quanto à língua e à cultura do país, seria de arrancar risada, de desprezo, de um americano àquela altura. E falamos de 60 anos atrás. Mesmo assim, deixamos que hoje eles nos dêem uma lição de como tratar a questão étnica, o que só passa recibo do modo como houve uma espécie de recolonização de mentalidades, de modo que a última palavra da história ficasse com as sociedades anglo-saxãs, brancas, do norte da Europa e dos Estados Unidos. Portanto, do epicentro do capitalismo tardio. Porque no meio do séc. XX, houve um momento em que esse capitalismo vacilou, e o sul do planeta --- pobre, cíclico, colonizado e em desenvolvimento --- ameaçou altercar com o norte em argumentos históricos. Mas isso foi rapidamente "solucionado". E duas décadas depois, mediante o apelo dos Cultural Studies, ninguém lembrava mais das soluções originais, orgânicas pensadas desde a "periferia" do planeta.)

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