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Luzes, Sombras, Sons


Conversa#70 - Reclassificando Clássicos [29]

-Cat People (Jacques Tourneur, Estados Unidos, 1942, cin. Nicholas Musuraca) -The Curse of the Cat People (Robert Wise e Günther von Fritsch, Estados Unidos, 1942, cin. Nicholas Musuraca) (Ambos produzidos por Val Lewton para a RKO)

Quando Oliver Reed (Kent Smith), jovem engenheiro naval, mostra-se tão preocupado com a imaginação da filha de sete anos, Amy (Ann Carter), na verdade sua preocupação é consigo mesmo. Quer dizer, é com a debilidade do legado emocional que está tecendo à volta da garotinha. E é em torno disso que se dão as variações da sequela de Cat People: The Curse of the Cat People. Muitos creditam as sutilezas dessa suíte de filmes, capaz de impressionar diretores como Paul Schrader e Joe Dante, mais ao produtor Val Lewton do que aos diretores. Além de Tourneur, também dirigiram filmes produzidos por Lewton nomes como Robert Wise e Mark Robson, que inicialmente eram editores. (E isso inclui o clássico The Body Snatchers (Wise, 1945) --- não confundir com o cult The Invasion of the Body Snatchers (Don Siegel, 1956)). Schrader admirava tanto o estilo distinto desses filmes que acabou refilmando Cat People em 1982. E Joe Dante deles diz que sua "disturbingly Disneyesque fairy tale qualities have perplexed horror fans for decades". No mundo feito de sombras e sons de Val Lewton, importa menos o diretor que está a serviço, do que um conceito do fazer, um estilo. Um talhe determinado por esse produtor que tinha um peso direto no produto final. Os filmes parecem derivar mais de si, o produtor, do que do diretor a seu serviço. Mesmo que tal diretor seja um estilista, como Jacques Tourneur.

No caso, Tourneur dirigiu o primeiro, um filme intermediário entre ambos (I Walked With a Zombie, 1943), e dirigirá um terceiro: The Leopard Man (1943). Mas se este terceiro não está em linha com os dois primeiros, é porque Lewton parece menos presente, assim como Musuraca está ausente --- a fotografia é feita por Robert de Grasse. Por seu turno, Musuraca fotografou os dois Cat People. E irá auxiliar Tourneur em outros filmes produzidos já fora do "núcleo de terror" da RKO, coordenado por Lewton. Tourneur e Musuraca irão trabalhar à quatro mãos na confecção de um filme importante: Out of the Past (1947), considerado a quintessência do estilo noir. De outro modo, há um senso de trupe em torno desse núcleo de atores e de técnicos agrupados por Lewton para confecção desses filmes. Pois chega a surpreender o grau de serialidade, de entretenimento de massa que possuem e, em simultâneo, a consistência e corência formal que ostentam como um emblema. A certa altura, fala-se de duas equipes técnicas alternando-se dia e noite para ultimar os filmes, e assim aproveitar a onda de popularidade lograda inicialmente por Cat People. Só alguém com uma ideia na cabeça poderia fazer algo com essa câmera não só à mão, mas que praticamente não cessava de gravar. Era compulsiva. Nunca o universo dos filmes de terror foi mais delicado que nesses dois Cat People. Ou mais assemelhado a contos de fada. Ou mais plástico, sem depender de qualquer efeito especial, que não simples sons e sombras. E é orgânico que na sequência do grande conto de fadas para adultos que é Cat People, sobreviesse um em que a protagonista fosse uma criança: uma menina, e não um menino. Mas então como se explica que essa menina, que não guarda qualquer vestígio de parentesco com a misteriosa mulher-gato, intrinsecamente perversa, do primeiro filme, pareça então haver herdado algo dela? Bem, o que há de vínculo entre as duas é Oliver Reed (Kent Smith), o pai da menina. Logo, é de supor que o que está fora dos gonzos deve provir de algo em nome do pai. Ou seja, da relação desse pai, enquanto pessoa com os demais e com o mundo. Com a primeira mulher, Irena Dubrovna (Simone Simon); com a segunda mulher, Alice (Jane Rudolph); com o Dr. Louis Judd (Tom Connway), o fleumático psiquiatra do primeiro filme; com Edward (Sir Lancelot), o mordomo jamaicano do segundo, com a própria garotinha, Amy (Ann Carter). Ou seja, há algo em torno de Oliver que conjura uma estranha atmosfera. Ora, isso vem de encontro a algo que Oliver confessa a Irena logo quando o interdito sexual começa a erodir o vínculo entre ambos, no início mesmo de um casamento que nunca se consuma: ele tinha sido "feliz" até então. Nenhum contratempo em sua vida: infância tranquila, boa transição para a vida adulta, boa colocação profissional. Nenhum drama. Foi apenas a partir de Irena, com sua confusa história, sua crença --- aparentemente estúpida --- de fazer parte de uma linhagem de mulheres-felinas, intrinsecamente más; de seu conto gótico, sobre um rei sérvio que matou os gatos domésticos e selvagens de uma região maldita --- cuja população se havia caldeado com os mamluk (mestiços muçulmanos do norte da África fixados nos Balcãs), como se redimisse à sangue de felino a maldade do mundo --- que uma série de infortúnios abateu-se sobre a vida do jovem e bem sucedido engenheiro naval (Smith). São poucos os casos de filmes em que o filme-continuação é tão orgânico em relação ao filme-inicial quanto nesse. E quando se leva em conta que são feitos por diretores diferentes, se tem ideia da medida da interferência de Lewton, que talvez, como produtor, aja para o núcleo de terror da RKO de forma análoga à que John Grierson agia para o núcleo documentarista britânico da Empire Marketing Board: alguém que porta a ideia, que aglutina, que a fatia com os demais. Que coordena uma série de filmes tendo a palavra final antes que o diretor. Outro caso análogo é o de Charles Laughton, quando se lança a dirigir, já ator maduro, The Night of the Hunter (1955). Mas aqui, se a semelhança passa também pela construção de um "fairy tale", que as imagens parecem mesmo forjar em si, a diferença vai pelo fato de Laughton haver de fato assumido a direção, coisa que não acontece com Lewton. (Ou que aconteceu de raspão, apenas no início, com Grierson). Tornando aos filmes do núcleo de Val Lewton, eles possuem essa qualidade feérica. De fazer sonhar. Mas também parecem indicar que esse suplemento onírico não pode ser dissociado de erotismo e da sexualidade. E especialmente de erotismo e de sexualidade recalcados. Portanto, dos impulsos básicos de morte e nascimento. De criação, destruição. E, por sequência, da psicanálise. (Ou ao menos daquela zona da psicanálise profundamente afetada por alguma noção de inconsciente coletivo, e de mito. Provavelmente mais do que psicanálise, o que os filmes de Lewton não desprezam é mesmo o alcance do mito). Qualidade, que aliás, encantou Manuel Puig, a ponto deste autor argentino citar o Cat People em seu romance mais conhecido: El beso de la mujer araña (1976). O desajuste de Amy, filha de um jovem casal, bem sucedido profissionalmente, morando numa bela vivenda do subúrbio --- para todos os efeitos yuppies avant-la-lettre --- teria a ver, portanto, com algo que simplesmente não funciona na ordem do nome do pai. Ou seja, é como se o pai não legasse à filha a força de seu nome. O pai inconscientemente sabe disso. Sabe que não está passando à menina o que um pai deveria transmitir: amor, aceitação, carinho, confiança, serenidade, ouvido, etc. Daí que os receios que tenha diante da prodigiosa imaginação, por vezes quase autista, da filha, sejam na verdade receios quanto à própria capacidade de amá-la. É dessa fissura, que, como da bolsa de pandora, derivam todos os males e perversões que se vai surpreendendo ao longo do segundo filme. Algumas das situações propostas por seu roteirista, DeWitt Bodeen, são engenhosas. Como a que põe lado a lado uma ex-atriz provecta, recolhendo seu tempo, e uma menina de sete anos atrás de devolver um anel mágico na sala de uma velha mansão de aspecto soturno. As duas parecem "brincar de mundo", a tomar chá e conversar entretidas, observadas de vez em quando, sorrateiramente, por uma estranha mulher-gato --- por quem a velhota nutre resoluto desprezo --- e a trocar confidências quase como se tivessem a mesma idade. Aqui, quanto mais a velhota apela para um tom assustador, de assombro e mistério, ao contar suas histórias fantasmagóricas, mais cai no gosto da garotinha. Elas fabricam entre si uma companhia de teatro e sua audiência. Conta-se que na verdade os roteiros eram escritos a quatro mãos por Bodeen e Lewton. Só que Lewton não se creditava. (Assim como não o fazia na co-direção e na edição). Depois, à noite, em casa, a menina desperta com medo. Mas toca no anel e crê que a amiga vem em seu socorro. O que de fato acontece. Poucos jogaram tão bem com as sombras como elemento expressivo. Quem não conhece a técnica de horror elusiva de Lewton, surpreende-se com tão sutil emprego da sombra conjugada aos ruídos. The Curse of the Cat Peolpe nos reconduz a um apavorante retorno por aquelas regiões da infância em que se teve muito medo, mas também não pouco fascínio. Por isso, a exemplo de The Night of the Hunter (1956), ele traz algo da ordem do sublime. Embore, precisamente neste ponto, também implique que sob a estabilidade da vida adulta esconde-se uma infância tão reprimida quanto a libido de alunos de dezoito anos numa manifestação contra o capitalismo tardio. No entanto, voltando à questão, há esse grau de instabilidade do pai, Reed. Pois é seu recalque da memória de Irena --- que no segundo filme aparece apenas em fotos ou como um espectro --- que acaba conjurando precisamente o oposto: a intensa presença desta na vida da filha, a ponto de transformar a ex-mulher morta na amiga secreta imaginária da criança. Não poderia haver mais perfeito vínculo entre os dois filmes. Naturalmente, eles fazem parte de um contexto mais amplo, onde figuram outros títulos que pouco tem a ver tematicamente com ambos, ao menos numa primeira visada. Porém não deixa de ser um retorcer-se surpreendente da trama, porque no primeiro filme, tudo indica ao espectador que se há uma culpabilidade pela não consumação do casamento, esta seria inteiramente uma prerrogativa de Irena Dubrovna (Simone Simon). Por várias razões. Não menos, por ser uma eslava, uma intrusa no universo anglo-saxão. Alguém portando velhas histórias para uma América renovada. E não só renovada, mas renovadora. Regeneradora. Que quer mais é apagar essas histórias para poder dormir em paz consigo mesma, e consumir melhor.

A aposta de Oliver Reed, um projetista naval, que vive sobre a mesa de cálculos, é a ideia clara, a razão. É transparência, cálculo, copo d'água. Ele é um engenheiro. Alguém da ordem do racional, da ciência exata. Alguém que bem poderia ter inspirado o primeiro livro de João Cabral de Mello Neto. Que Reed tenha se envolvido com uma estrangeira é um pecado pouco perdoável àquela altura. E, pior, não qualquer estrangeira, mas uma que não só diferia dele etnicamente --- uma eslava --- como cria ser descendente de uma exótica estirpe de mulheres-gatos, perversa e satânica. (Ou seja, de uma lésbica). Tudo isso somado, deve parecer ao apolíneo Reed como um equívoco sem precedentes. Algo que ao não admitir que se passou, ao não querer transpor para o presente --- e o presente mais concreto que vê diante de si é a própria filha --- acaba passando para ela de bandeja, digamos. Represa-lhe todo o mal-estar reprimido do caso Irena Dubrovna. Faz da filha uma verdadeira herdeira da estirpe das mulheres-gatos. Eis porque em dois momentos da noite de Natal, Amy esteja consciente de sua solidão no centro de uma família que aparentemente é tão carinhosa e comprometida. Embora esse carinho e esse comprometimento sejam algo mais da ordem da superfície. No primeiro momento, uma garota mais velha, que veio junto com o grupo que entoa Chistmas Carols (Hinos de Natal), indaga que presentes ela ganhara. Amy afirma que só vai saber na manhã seguinte. A outra menina então diz que não é assim, que na casa dela, "como na de todo mundo", os presentes são abertos na véspera, como deve ser. Ao que Amy diz: ---Well, I guess we're not a very proper family. O segundo momento, confirma que de fato não são. Pois enquanto a mãe toca piano e o pai se junta ao coro das canções natalinas, a filha sai de fininho e segue para o amplo jardim, mesmo sob uma inclemente nevasca. Lá encontra-se com Irena. Esta entoa uma canção em francês que ressoa mais alto, inclusive, que toda a algazarra dos adultos, dentro da casa. Como, aliás, a confirmar a letra de certa canção nossa do ciclo do Reisado: "esta casa está bem feita, por dentro, por fora não". Amy entrega-lhe o presente. Ou seja, é o único presente entregue apropriadamente, na Véspera --- pois o resto da família não é "a very proper family". A expressão facial de Ann Carter atingindo o maravilhamento e o êxtase ao mirar o nada, sua fantasia, o espectro de Irena; constitui um dos trunfos do filme. Ela é "sua grande amiga". E quando a viu pela primeira vez, após pedir uma amiga ao "anel mágico", passou o dia tão bem que o criado jamaicano, Edward --- que na vida real leva o inesperado nome de Sir Lancelot --- não deixou de observar o que os pais não viram, mesmo em folga do trabalho: que a menina tinha passado o dia muito bem. E quando brincava e saltava no jardim, nem parecia estar sozinha, porém interagindo com outra criança. Isto é confirmado pela professora de Amy, quando visita os Oliver, na Noite de Reis. Há um instante em que junto à lareira ela diz a estrofe inicial do poema de Robert Louis Stevenson: When children are playing alone on the green, In comes the playmate that never was seen. When children are happy and lonely and good, The Friend of the Children comes out of the wood. A força da fantasia conjura na mente das personagens de Lewton todo um conto de fadas. "Um mundo encantado de Disney", no dizer de Joe Dante. E com uma convicção que as fazem ver e ouvir seres e coisas que existem apenas nesse mundo conjurado. Quer dizer, em suas mentes. Esse mundo feérico, do faz de conta, cumpre sua função: dotar de expressão, reelaborar todo mal estar e o não dito que pairam sobre as relações. Especialmente sobre as relações em família. E, no caso, sobretudo entre pai e filha. Logo, o mistério, aqui, não é propriamente que existam, mas que sejam tão potentes e reais. Como nas duas cenas mais tensas do primeiro Cat People: 1. a que Irena segue Alice, tarde da noite, até a parada de ônibus, (quando então se dá o famoso efeito sonoro, rotulado depois de "Lewton Bus"). E 2. a que Alice julga estar na presença da pantera, quando imersa na piscina do clube de natação. E, contudo, há também margem para o imponderável, porque está longe de se explicar racionalmente que o robe de banho de Alice tenha sido feito em tiras pela ação de garras afiadíssimas. Ou que a pantera seja posta em campo como dado real, não imaginado. De outro modo, é possível perceber por que John Carpenter desgostava dos filmes de Lewton. Ele reclamava do modo como neles o perigo era mais subentendido que proposto. Ou do propalado "efeito" do Lewton Bus: o modo único como Lewton suprime um vestígio forte de sensorialidade imaginada por um ruído factível que imediatamente despedaça a fantasia sombria. E num piscar de olhos, então, instala mais distanciamento na audiência que as teses de Brecht. É que a sensibilidade de Carpenter passa mais pelo excesso que pela contenção. Lewton é sóbrio e discreto. Faz filmes de terror como quem escreve epigramas. Num momento de tensão, ouve-se uma pantera rosnar. Ato contínuo esse rosnado dissolve-se num ruído de motor de ônibus. Isso leva o espectador a questionar: o rosnado existiu mesmo ou foi produto da imaginação de alguém? Da imaginação de quem? Da personagem perseguida? Da imaginação do espectador? Carpenter não quer ter nada a ver com isso. Muito mais literal e americano, nesse sentido, ele quer o próprio trash. O barroco assumido. O monstro presentificado adiante. A visada de Carpenter é a incorporação de uma ideia abraçada, por primeiro, pelo recém-falecido George A. Romero.

No entanto, o mais paradoxal nessa senda é que, antes de Romero, o próprio Lewton haja antecipado a temática do zombie movie, em I Walked With a Zombie (Jacques Tourneur, 1943). Mas isto já são outros quinhentos.

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