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Terríveis Trópicos


Conversa#69 - Reclassificando Clássicos [28] I Walked With a Zombie (Jacques Tourneur, Estados Unidos, 1943) cin. J. Roy Hunt

[Filme produzido por Val Lewton e seu núcleo para a RKO]

Ao deparar-se com a outridade do trópico --- o céu estrelado, a brisa tépida, peixes-voadores a planarem à flor d'água, ar límpido, longe dos invernos glaciais do Norte da Europa --- Betsy Connell (Frances Dee), uma enfermeira canadense no convés de um veleiro a atravessar o Caribe em demanda de uma tal Ilha de San Sebastian, encontra-se magnetizada pela beleza: ---It's not beautiful --- adverte Paul Holland (Tom Conway), o dono de uma plantation de cana-de-açúcar. Em terra firme, no caminho do solar dos Holland, Betsy (Dee) recebe algumas informações do cocheiro. San Sebastian foi colonizada pelos Holland, que lá introduziram negros escravos. Há uma pequena comunidade de brancos cercada por uma ampla maioria de descendentes de africanos. Os Holland, donos de uma vasta plantação e de uma mansão senhorial, são estadunidenses educados na Inglaterra. Ela ainda sente-se maravilhada com o clima e desfruta de bom jantar na companhia do meio-irmão de Paul, Wesley Rand (James Ellison), que visivelmente não vai muito com os modos austeros do irmão. Na madrugada, Betsy acorda ao ouvir uma mulher soluçar. Sai da cama e entra numa espécie de torre. Lá é cercada por uma figura muda, com aspecto sinistro: uma mulher bela e loira, com ares espectrais, como se alguém mais encerrado em seu próprio universo que um autista. Betsy grita e acorda todo mundo na redondeza. Casa grande e senzalas. A figura avistada não é senão a esposa de Paul, Jessica Holland. No dia seguinte, o Dr. Maxwell (James Bell), médico da família, explica a Betsy que Jessica sofreu um dano irreparável em sua medula óssea por conta de uma febre tropical. Isso a privou de qualquer forma de desejo ou arbítrio. Ela não vive, vegeta apenas: ---Temos aqui uma bela zumbi --- diz o médico. Mas Betsy não sabe o que é um zumbi. O médico lhe explica. Jessica Holland responde a muito poucos estímulos: não se alimenta sozinha, sequer fala. Intrigada, Betsy quer saber se a outra sofre. O doutor lhe diz que é impossível precisar. Mas o mais provável é que ela aja como uma sonâmbula: sem consciência do que se passa ao redor. O que se pode fazer é proporcionar-lhe algum conforto físico, porque a doença não tem cura. Depois de entregar a Betsy algumas notas referentes à dieta e ao tratamento, o médico se vai. No seu dia de folga, Betsy segue ao vilarejo e acaba encontrando Rand. Este a convida para um drinque na taverna. Sem perceber que Rand encontrava-se lá, um violeiro local faz um improviso malicioso citando o nome do meio irmão de Paul. Segundo o violeiro, Rand e Paul irão se apaixonar por Betsy, e isso será fonte de desgraças. É estranha a sensação que se experimenta diante de um filme assim. E é a sensação de que dificilmente ele se parece com um filme americano da época. Ele é falado em inglês, usa o aparato técnico de Hollywood e até algumas de suas convenções de corte e movimentação de câmera, mas difere bastante de tudo que se faz ou assunta por lá no início da década de 1940. Há uma qualidade onírica perfazendo-o subterraneamente. As personagens não parecem ser apenas o que a imagem mostra. Elas são mais. São alegorias. E um fatalismo permeia tudo. Um fatalismo antecipado no sotaque crioulo do cantador com seu violão, na taverna do vilarejo. Muitos creditam as sutilezas dessa suíte de filme mais ao produtor Val Lewton do que aos diretores. Isso deve ser relativizado. Ao menos neste I Walk With a Zombie. E não só porque o diretor é um dos ases de um cinema mais visual, daquilo que nomeamos por 'cinematicidade'; mas também por ser o filme favorito desse diretor: Jacques Tourneur.

No caso de I Walk With a Zombie, fica óbvio que seu ponto de partida é o Jane Eyre, de Emily Brontë. O drama da enfermeira, contratada para cuidar da mulher do patrão, que acaba apaixonando-se pelo patrão, às custas de escantear o irmão liberal e falante. A diferença é que a trama é transposta para uma plantation nos trópicos. E é aí que ganha suas feições góticas, longe das charnecas inglesas. Através do contato com uma criada, Alma (Theresa Harris), Betsy tem a real dimensão da importância do vodu e dos curandeiros na vida da comunidade de San Sebastian. Eles são, de acordo com Alma: "better doctors". Ao se apaixonar por Paul, Betsy julga que vê-lo feliz passa pela reabilitação de Jessica. Mas que isso envolve um risco que é necessário correr se se quer chegar de fato a uma melhora da condição. Daí que indague a Alma, se acredita que um curandeiro vodu é capaz de fazer melhor que um médico convencional. Quando faz a mesma pergunta à Sra. Rand, sua resposta é ambígua :"esse povo é muito primitivo. Seus costumes podem chocá-la". Se nesse ponto, a visada não só de Betsy, mas do próprio filme, parece absolutamente inovadora, o que vem adiante aterra ainda mais: Betsy acaba descobrindo que a Sra. Rand se faz passar por mãe de santo. O final é trágico, e é romântico. Mas o filme não deixa de ser uma lufada de ar numa Hollywood que se encontrava demasiado girando em torno do próprio umbigo. Parece quase uma constante nos filmes produzidos por Val Lewton que o elemento de choque entre culturas deva dizer presente. E esse é um aspecto central na hora de tratar a principal questão de nosso tempo: a dos imigrantes.

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